“Era uma Vez em… Hollywood”, o romance, tem várias utilidades. A primeira, e que interessa a qualquer espectador de filmes e audiovisuais em geral, é deixar bem claro tudo que é preciso passar pela cabeça de um diretor de cinema antes de fazer seu filme.
Por exemplo, o livro se abre com um longo diálogo entre o protagonista, o ator Rick Dalton –no filme, Leonardo DiCaprio– e o agente Marvin Schwarz –papel de Al Pacino. No livro, uma conversa de várias páginas; no filme, um diálogo quase sumário.
No filme, é possível que muitas dessas falas se reduzam a um gesto, um ambiente cenográfico, um adereço, enfim, coisas que marcam uma personalidade e tornam ociosa uma longa conversa para que os dois cheguem a um entendimento (ou desentendimento, tanto faz).
Mas é preciso que o diretor –e no caso também roteirista– tenha uma série de informações decisivas para o que fará em imagem, porém desnecessárias na filmagem.
É preciso que ele conheça muito bem os seus personagens, hábitos, passado e até mesmo origem para chegar a algo sólido. E é indiferente que tenha escrito o romance antes ou depois de fazer o filme.
Se tomarmos o personagem de Brad Pitt, o dublê Cliff Booth, o livro pode até esclarecer algo que não fica claro no filme (e é até mesmo insatisfatório) –por que Cliff é uma espécie de dublê exclusivo de Rick. Não será talvez de todo equivocado dizer que existe certa inadequação entre a personagem e o ator: Brad Pitt exala simpatia e leveza. O livro revela um passado bem mais sinistro.
No entanto, percebemos que a presença de um ator como Pitt funciona na tela, pois produz um contraste com o depressivo Rick Dalton que funciona bem para o andamento da ação (dois depressivos juntos não seria bom).
A segunda utilidade é em especial para novos cineastas ou roteiristas. Inúmeras cenas, por vezes boas, foram suprimidas do roteiro (ou sumiram na montagem, tanto faz). No romance, no entanto, algumas delas podem ser fascinantes, como o encontro com o veterano ator Aldo Ray, na Itália.
É verdade que Quentin Tarantino desfila uma vasta filmografia, que pode até ser útil a estudantes ou iniciantes na arte do cinema, embora no livro soem por vezes excessiva.
Em todo caso, é interessante a notação segundo a qual para Rick Dalton só acredita no cinema feito em Hollywood, enquanto Cliff, ex-pracinha na Segunda Guerra, se abre aos filmes estrangeiros (é fã de Kurosawa, gosta do primeiro Fellini, até que ele passe a achar, segundo suas palavras, que a vida é um circo, despreza Antonioni e tem genuíno interesse por Jean-Paul Belmondo).
Às vezes o livro frustra o prazer do filme. Assim, a cena de briga entre Cliff e Bruce Lee é feita para ser vista. No romance é bem menos interessante (embora muito mais explicada).
Idem para a presença da jovem atriz que contracena com Rick Dalton no piloto de seriado em que ele está fazendo o galã. O encontro entre os dois, quando Rick está lendo um livro, é uma das melhores do filme. Lá está o seu verdadeiro tema, o envelhecimento e a decadência. No livro, as situações com a garota se arrastam e se tornam menos interessantes.
Ainda assim, são bem superiores à cena de bebedeira entre Rick e o astro do seriado, após a filmagem ou à exaustiva descrição do episódio que será filmado (e mais um pouco) naquela ocasião.
De todo modo, o livro se presta também a estudantes de roteiro (ou roteiristas), duplamente. A partir dele se podem fazer exercícios de adaptação do livro para o texto na tela ou vice-versa.
No caso, será fácil perceber como o gosto do Tarantino por certa ordem de diálogos (aqueles falsamente inúteis) se transforma no livro em uma série às vezes infindável de diálogos dignos de serem cortados (ou de inspirarem um seriado).
É nessas profundas desigualdades (cenas divertidas, outras ótimas, outras ainda bem bobas) que se revela também o gosto do autor pela “pulp fiction”, que deu nome a um de seus filmes que nada tem de “pulp”, embora muito tenha de pop.
Este livro de picos e vales (altos e baixos) evidentes até demais serve muito bem a quem trabalha com cinema e audiovisual e a quem apenas deseja ler um livro em que o humor comparece com frequência (tipo leitura de férias).
No mais, o livro suprime aquele horrível final do filme em que Sharon Tate seria salva da morte por Rick e Cliff. Boa ideia e ponto para o romance, que confirma, no mais, a premissa do filme, que é sobre o envelhecimento e a decadência.
Fonte: FolhaPress/Inacio Araujo