LEONARDO SANCHEZ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Não é exagero dizer que Ryan Murphy mudou a TV americana. O contrato de US$ 300 milhões -ou cerca de R$ 1,7 bilhão- que o produtor assinou com a Netflix em 2018, quebrando recordes para a época, é prova de que ele é, no mínimo, uma das figuras mais influentes do entretenimento.
Com séries de sucesso inquestionável no currículo, como “Glee” e “American Horror Story”, ele mostrou que era possível lacrar e lucrar, trazendo para as telas diversidade e debates sobre injustiças sociais -sem abrir mão de uma fatia generosa da audiência. Foi assim que ele escancarou a porteira para a enxurrada de personagens coloridos que temos hoje na TV.
Mas a troca da televisão tradicional para o streaming talvez esteja mostrando um lado menos atraente de Murphy. Suas três primeiras séries para a Netflix, “The Politician”, “Hollywood” e “Ratched”, não animaram muito e alcançaram notas baixíssimas para seus padrões no agregador de críticas Rotten Tomatoes.
Estaria Murphy perdendo seu toque de Midas? Nem tudo o que ele toca está virando ouro? É o que afirmam alguns críticos ao trabalho recente do showrunner. Mas é preciso dizer que, resenhas à parte, ele continua gerando muita publicidade e conquistando um público decente.
Talvez o problema esteja no novo modelo de mercado que emerge agora com o streaming, e não na cabeça de Murphy. Num universo tão imediatista e efêmero quanto o da programação sob demanda, a velocidade com a qual filmes e séries são lançados e, portanto, produzidos, pode alienar não só o mais dedicado dos espectadores, como também dos criadores.
Enquanto em suas primeiras duas décadas de carreira o showrunner produziu 19 títulos –se ignorarmos documentários sobre os bastidores de suas próprias séries–, na Netflix ele já assina sete obras, em menos de três anos de trabalho. E isso enquanto continua desenvolvendo novas temporadas de tramas que ficaram nas emissoras FX e Fox, como “American Crime Story”. É uma linha de produção intensa.
A presença de Murphy no Emmy também diz muita coisa sobre o momento atual. Seu trabalho para a televisão rendeu a ele 32 indicações, enquanto o desenvolvido para o streaming, nenhuma até agora.
Com tantas séries e filmes nos braços, fica difícil arranjar tempo para aperfeiçoar ideias que, sim, continuam sendo muito boas. “Ratched”, por exemplo, pode pecar pela execução, mas há potencial ali. E pouco difere “The Politician” das intrigas colegiais que consagraram “Glee” como uma das comédias mais importantes das últimas décadas.
Ryan Murphy recebe o Emmy de melhor minissérie por “The People v. O.J. Simpson: American Crime Story”, em 2016 Mike Blake/Reuters Ryan Murphy recebe o Emmy de melhor minissérie por “The People v. O.J. Simpson: American Crime Story”, em 2016 ** Murphy sempre foi um showrunner de excessos. Agora, com a fama estratosférica conquistada e com um contrato que garante a ele liberdade criativa e gordos orçamentos, esse seu lado só se intensificou. Sua pompa alcançou o ápice com o musical “A Festa de Formatura”, que ele dirigiu e lançou em dezembro. Cheio de purpurina e estrelas do calibre de Meryl Streep e Nicole Kidman, o filme passou longe das sutilezas.
É o tipo de obra ame ou odeie. Um “guilty pleasure” em sua melhor forma para alguns, e tiros na Broadway para outros. Empoderamento glamoroso ou cafonice sentimental. Mas a estética hiperbólica foi o menor dos problemas de “A Festa de Formatura”, que sofreu duras críticas por ter o apresentador James Corden, casado com uma mulher, no papel de um gay coberto de estereótipos.
Homossexual, Murphy vem há anos defendendo arduamente a representatividade em Hollywood. De “Glee”, com seus personagens que se espalhavam por todos os espectros da sexualidade, até “Pose” e seu elenco e equipe técnica cheios de artistas trans.
Mas ao mesmo tempo em que criou histórias diversas e alçou quase anônimos LGBTs ao status de estrelas, como sua musa Sarah Paulson, ele comete erros grosseiros, como foi a escalação de Corden. E, antes mesmo que esse tipo de discussão invadisse o meio cultural, a do heterossexual Darren Criss, outro queridinho, para viver não só um, mas dois personagens gays, em “Glee” e em “The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story”.
Isso não compromete seu longo e inestimável trabalho como uma das principais vozes LGBT no entretenimento nos últimos anos. Mas atesta que Murphy é, e sempre foi, uma figura embebida em contradições e muito, mas muito caprichosa.
A verdade é que o showrunner continua sendo o que sempre foi, mas agora na Netflix tem o renome e o poder para fazer seu trabalho de forma ainda mais grandiosa, pomposa e espalhafatosa. Apesar do sucesso mundial de “Glee” ou de “American Horror Story”, essas também nunca foram séries para qualquer um. Era preciso gostar de um estilo bem particular de afetação presente em todos os trabalhos de Murphy, do mais adolescente ao mais sério e premiado.
Se traçarmos um paralelo entre seu trabalho mais bem-sucedido, “Glee”, e seu último e execrado “A Festa de Formatura”, veremos várias semelhanças. Lea Michele e Meryl Streep fizeram ambas as vezes de mulheres talentosas e ególatras, a primeira na série e a segunda, no filme. Chris Colfer e James Corden eram gays afeminados que brincavam com estereótipos. Amber Riley e Nicole Kidman deram voz à razão enquanto esperavam sua vez de brilhar. E Kevin McHale e Andrew Rannells não recebiam muita atenção, mas eram esforçados.
As mudanças no trabalho de Murphy vieram, mas mais na forma do que na essência. Sobriedade, afinal, nunca foi -e nem deveria ser- o forte de um artista que se propõe a escandalizar.
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