TETÉ RIBEIRO
FOLHAPRESS – “Queen & Slim”, que chega ao streaming agora, pode ser definido como um “Bonnie & Clyde” negro, referência ao filme de Arthur Penn de 1967 -aliás, um dos personagens mais interessantes do longa define assim a história da fuga de dois jovens negros que cruza os Estados Unidos depois de um encontro fatal com um policial branco racista.
Mas o longa de estreia de Melina Matsoukas, conhecida pelo vídeo “Formation”, de Beyoncé, entre outras coisas, é mais que mais um representante do subgênero cinematográfico que já deu “Louca Escapada” (Steven Spielberg, 1974) e “Terra de Ninguém” (Terrence Malick, 1973). É um dos primeiros filmes que chega ao público no meio das reivindicações históricas e antirracistas do movimento “Black Lives Matter”.
É sob este ponto de vista que deve ser assistida a história interpretada pelos atores britânicos Jodie Turner-Smith e Daniel Kaluuya (protagonista de “Corra!”, de 2017), na pele de dois jovens bem-sucedidos que se conhecem por um aplicativo de encontros e que só são nominados no final (os nomes do título, respectivamente).
No fim da noite, já a caminho de casa, são parados por um policial racista e violento, infelizmente longe de ser a exceção em encontros do tipo, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, e a noite acaba com abuso, tiros e uma morte. Sem saber como agir, o par sai da cidade, sem a menor ideia de para onde ir e o que fazer.
Daí para frente, a história toma um rumo cheio de suspense e drama. Os dois decidem cruzar os Estados Unidos por estradas vicinais até chegar à Flórida, onde pretendem fugir para Cuba. A cada cidade por que passam, aumenta a perseguição policial, que aumenta a ajuda recebida por eles pelas comunidades negras locais e insufla os protestos antirracistas e o processo de transformar os dois em heróis marginais.
“Queen & Slim” é um filme raivoso. Durante a jornada da dupla, a raiva que eles sentem pela situação e um pelo outro vai também se transformando em uma interlocução quase obrigatória, que faz com que passem a se conhecer e a se tolerar. Da tolerância nasce a paixão -e uma cena de sexo entre os dois intercalada por um protesto contra a violência policial é um dos pontos altos de um filme cheio deles.
As notícias sobre a morte do policial começam a aparecer, e nas horas seguintes todas as estações de rádio, canais de TV e as primeiras páginas dos jornais e home dos sites trazem foto do casal. As imagens da câmera do carro do policial viralizam. Não haverá saída fácil. “Vocês são os novos ‘Black Panthers?’, pergunta alguém. Sim, mas não só.
Em Nova Orleans eles terão abrigo, Queen garante. O seu tio Earl gerencia uma casa de reputação duvidosa, onde eles podem cortar o cabelo, trocar de roupas e sair em direção a um lugar mais calmo. O plano é ir para um paradeiro em que não precisem se esconder. Desse momento em diante, “Queen & Slim” abre mão de ser um thriller.
O drama toma conta da narrativa e situações quase surreais passam a acontecer. Em um momento particularmente bizarro, mas cheio de tensão, Slim tenta roubar um posto de gasolina e o funcionário branco que o atende promete encher o tanque em troca de segurar a arma por um minuto.
Quando aparecem Chloë Sevigny e Flea em participações especiais como dois aliados caretões, começa a dar a sensação que aquele relato talvez pudesse ser contado em 90 minutos, não nas mais de duas horas que tem o longa. Mas a obra nunca fica aborrecida, só levemente arrastada.
Daniel Kaluuya é um ator tão talentoso que faz de seu Slim um sujeito cordial preso em um pesadelo. Mas é Jodie Turner-Smith que tem o papel mais complexo, com uma personagem cujo arco é quase todo interno que tem as falas mais significativas.
Em alguns momentos agradáveis, os dois apenas desfrutam a companhia um do outro. Ouvem música (a diretora formada em clipes faz uma seleção ótima), divagam e tocam em temas profundos. Slim questiona: “Por que os negros sempre têm a necessidade de ser excelentes no que fazem?”. No final das contas, é angustiante mas prazeroso assistir a um filme em que os personagens pensam sobre assuntos que vão além da história que estão vivendo. O caminho é difícil, mas vale a pena embarcar.
Cultura
Terça-feira, 23 de julho de 2024
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