Cultura
Terça-feira, 23 de julho de 2024

Como Shyamalan, em ‘Batem à Porta’, aterroriza casal gay com seita do fim do mundo

Em “A Escolha de Sofia”, Meryl Streep é obrigada a decidir o impossível. Dá para dizer que o clímax é perverso, chantagista até. Mas isso não intimidou ou impediu que M. Night Shyamalan usasse o filme sobre uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas como referência para “Batem à Porta”, que chega aos cinemas nesta semana.
No longa, um casal vai passar as férias com a filha numa cabana no meio da floresta, totalmente isolado. Mas a viagem de paz e calmaria ganha novos contornos quando um homem forte e educado, interpretado por Dave Bautista, chega com três desconhecidos que, juntos, forçam a entrada no local.
Eles amarram os personagens de Jonathan Groff e Ben Aldridge e contam que estão ali porque o par precisa fazer uma escolha difícil, capaz de evitar o apocalipse. Se eles se recusarem a decidir, todo o planeta perecerá. Mas seria o grupo um bando de lunáticos? Uma seita religiosa extremista? Ou homofóbicos aterrorizando aquela família que foge à regra?
Em menos de duas horas, “Batem à Porta” propõe que o público se debata em dúvida junto ao casal protagonista, refutando ou cedendo aos diferentes argumentos que sustentam a tese apocalíptica. Cada espectador terá uma experiência diferente, conforme suas crenças e sugestionabilidade, garante Shyamalan.
“Eu queria falar da pressão de se fazer uma escolha e não ligo para qual ela seja. Mas uma decisão tem que ser tomada, afinal não se pode ter ‘A Escolha de Sofia’ se ela não fizer uma escolha”, diz o cineasta nascido na Índia em conversa por vídeo.
A essência dessa escolha, no entanto, está imersa em mistério. Há pouco a explicar sobre o filme sem entregar pontos importantes da trama. Mas isso não é novidade quando se fala do cineasta de “O Sexto Sentido”, “Corpo Fechado” e “Sinais”, que deu nova cara ao suspense na virada do milênio e se especializou em transformar, entre erros e acertos, pequenos orçamentos em longas refinados e impactantes.
Mesmo quem está familiarizado com o livro que serviu de base para o novo filme, “O Chalé no Fim do Mundo”, de Paul G. Tremblay, estará no escuro, literal e metaforicamente, quando entrar na sala de cinema. Shyamalan mudou completamente a segunda parte da história e não reciclou o título da publicação justamente para que as pessoas não achassem que o projeto era uma adaptação fiel.
Não haverá, no entanto, um plot twist daqueles que o consagraram. É como se o momento da virada surpreendente que marca suas obras tivesse sido diluído ao longo de “Batem à Porta”, num vai e volta, segundo o diretor, que contribui para a tensão em cena.
Obviamente haverá uma solução para o mistério no final, mas as conversas sobre crença -nos personagens e em aspectos religiosos que invadem a trama- mudam a verdade a todo momento. “É um exercício interessante, principalmente quando você vai conhecendo os personagens e os elementos liberais e conservadores que você atribuía a eles se alternam.”
Shyamalan reforça, no entanto, que apesar dos aspectos religiosos e ideológicos, no cerne da história está o amor. É assim em vários de seus filmes, que apesar do suspense costumam sempre orbitar o entorno de uma família.
Há luz e escuridão em todos os seus longas, e ele conta que, neste, conseguiu desenvolver a história de amor familiar mais profunda e relacionável de toda sua filmografia. “O gênero dos personagens era algo irrelevante para a história. É lógico que fica bonito nas campanhas de marketing, mas o filme não é sobre isso [uma relação homoafetiva]. É sobre uma família e o seu amor, o que é muito universal.”
Groff e Aldridge, que são gays na vida real, fazem coro e dizem que a naturalidade com a qual a homossexualidade entra na trama é “um sinal dos tempos”, principalmente se considerarmos que este não é um romance ou drama pesado, mas um filme de gênero, tipo de longa que pouco comporta personagens LGBTQIA+.
“Poderíamos ter qualquer família e, por acaso, temos dois pais e uma filha adotada. Há apelo universal, mas ao mesmo tempo não apaga uma narrativa queer que honra a experiência dos LGBTQIA+ e que é progressista”, diz Aldridge.
Em seu último filme, “Tempo”, Shyamalan também acompanhou uma família de férias. O trabalho recebeu críticas polarizadas, como acontece quase sempre em sua carreira. Há quem o ame e quem o odeie -as únicas unanimidades são os blockbusters que dirigiu, “O Último Mestre do Ar” e “Depois da Terra”, rechaçados por qualquer um.
Mas o cineasta reconhece que é nos pequenos orçamentos que se sente à vontade, e que por mais complicado que seja gravar quase que inteiramente dentro de uma cabana de madeira, é esse o tipo de desafio que o motiva a fazer cinema.
BATEM À PORTA
Quando Estreia nesta quinta (2), nos cinemas
Classificação 16 anos
Elenco Jonathan Groff, Ben Aldridge e Dave Bautista
Produção EUA, China, 2023
Direção M. Night Shyamalan

Fonte: FolhaPress