Cultura
Terça-feira, 23 de julho de 2024

‘Vortex’, de Gaspar Noé, é retrato dispensável do fim de uma vida

Se ao abordar os seres no auge de sua juventude e força, em “Clímax”, Gaspar Noé não era o que se pode chamar de otimista, pode-se imaginar como ele representa a decadência da existência. É o que faz em “Vortex”.
Eis o que nos espera. Um velho casal. Ele, escritor de livros sobre cinema -papel de Dario Argento-, ela, uma psiquiatra -Françoise Lebrun. O começo é primaveril: ele a chama para uma refeição no jardim de seu apartamento parisiense. É tudo que veremos sobre a felicidade conjugal. Em seguida, vemos os dois em seu leito. Ele dorme. Ela se agita. Gaspar Noé introduz então o que será o dispositivo essencial de seu filme: um grosso fio que separa o homem da mulher.
Desde então veremos duas imagens separadas por esse fio. Pode ser a mulher caminhando por Paris um tanto a esmo, entrando e percorrendo as estantes de uma farmácia, no lado esquerdo do quadro, enquanto à direita o marido levanta-se aturdido com a ausência da mulher e sai ao seu encalço. Logo saberemos que ela está mal. Sofre de uma doença neurológica degenerativa. Um mal sem cura.
Talvez para se esquivar a essa realidade, o homem insiste em tomar notas, com caneta ou máquina de escrever, para seu próximo livro sobre cinema. Entrementes, visiona filmes. O que vemos é, sintomaticamente, o “Vampiro”, de Dreyer. O homem demonstra apenas paciência quanto à situação desesperante da mulher. Sim, uma antiga psiquiatra, mal podemos crer, agora é uma espécie de fantasma que vaga pela casa.
Há algum tempo, Michael Haneke, cineasta alemão um tanto brutal, representou o final de vida de um casal de maneira infinitamente mais terna, em “Amor”. O fim da vida, na velhice, nunca é exatamente alegre, mas ali ainda era possível vislumbrar alguma beleza. Nada disso em “Vortex”. A horas tantas, o homem abraça sua amante de muitos anos: é tudo. Sempre com duas imagens, acompanharemos a dolorosa, implacável progressão da doença.
Diga-se em defesa de Gaspar Noé que sua ideia de trabalhar com dois pontos de vista -por vezes na mesma cena- sincrônicos funciona bem e termina por criar uma imagem neutra das vidas que chegam ao final.
Ao mesmo tempo, é impossível não notar a infelicidade da escolha temática. Se quer criar uma visão sinistra da existência humana, o cineasta pode se fixar com algum conforto e pertinência na juventude ou mesmo na maturidade de alguém ou de um grupo.
A velhice dispensa tais cerimônias: o fim é triste e solitário. Serve talvez para mostrar, e talvez seja o que Noé pretende, o supérfluo de nossa passagem pela vida, por mais brilhante que seja. Não há muito o que pensar a respeito: somos assim, essa e nossa natureza e esse nosso destino. É justamente isso o que faz de “Vortex” um filme, afinal, dispensável, ainda que seja impossível negar o talento ali envolvido.

VORTEX
Avaliação Regular
Onde Disponível na Mubi
Classificação 16 anos
Elenco Dario Argento, Françoisa Lebrun, Alex Lutz
Produção França, Bélgica, 2021
Direção Gaspar Noé

Fonte: FolhaPress