Cultura
Quinta-feira, 2 de maio de 2024

Documentário faz retrato dilacerante de violência policial

FERNANDA MENA
FOLHAPRESS – “Aqui já sabe como é que é, né?” É com esse lamento que o avô de Geovane Mascarenhas de Santana expressa sua desesperança de encontrar o neto vivo.
O “aqui” se refere à periferia de Salvador, Bahia, mas se aplica a várias outras pelo Brasil. O “como” diz respeito à violência com que a polícia age nesses territórios.
No dia 2 de agosto de 2014, o jovem negro de 22 anos foi abordado com sua moto por duas viaturas policiais no meio da tarde no bairro de Calçada, na capital baiana.
As imagens de câmeras de vigilância registraram a abordagem com agressões e humilhação antes de os policiais colocarem Geovane na viatura enquanto um dos oficiais da PM conduz a moto do rapaz na mesma direção.
A cena registrada em vídeo foi a última vez que Geovane foi visto com vida.
Seu desaparecimento depois da abordagem policial e a busca do pai, Jurandy Silva, por notícias do filho são o principal objeto do documentário “Sem Descanso”, de Bernard Attal, que estreou neste mês em plataformas digitais.
O diretor francês radicado no Brasil acompanha os 15 dias de angústia, desalento e luta de Jurandir para localizar Geovane, que criou sozinho.
Foi ele quem descobriu o vídeo com o registro da abordagem e o levou à Corregedoria da PM baiana, entre visitas inquisidoras a delegacias, esperançosas a hospitais e resignadas ao Instituto Médico Legal.
Jurandy ouviu de policiais que, como o filho tinha passagem pela polícia, poderia estar fazendo algo errado no ato da abordagem, como se o crime pelo qual já havia pago legitimasse a tortura e a morte.
Certo de que o destino de Geovane era obra dos policiais que o abordaram, Jurandy procurou jornalistas para uma denúncia, que ganhou o noticiário local.
A atenção midiática conseguiu evitar que o caso caísse no anonimato. Em 2019, mais de 6.300 pessoas foram mortas pelas polícias no Brasil.
Nem a Polícia Militar nem a Polícia Civil ou a Secretaria de Segurança Pública da Bahia responderam aos questionamentos do diretor Attal.
Partes carbonizadas do corpo de Geovane foram achadas em diferentes pontos da cidade. A tatuagem com o nome do pai, que o rapaz trazia no dorso, havia sido removida.
As investigações indicam o envolvimento de 11 policiais militares na morte de Geovane, que deixou mulher e filho. Sete foram indiciados. O caso ainda não foi a julgamento.
No filme, Jurandy diz nunca ter imaginado tamanha dor, pela qual passam tantas mães de jovens negros e pobres mortos por policiais.
Attal faz uma ponte entre a letalidade policial brasileira e a norte-americana, que há anos produz levantes do movimento negro e antirracista.
Contemplar realidades tão complexas e distintas como a brasileira e a norte-americana juntas, no entanto, enfraquece as duas pontas da narrativa. As semelhanças ficam evidentes, mas não as diferenças, essenciais para compreender resultados de parte a parte.
O documentário rodou festivais e recebeu diversos prêmios, como o de filme de impacto social e defesa dos direitos humanos do Doc Society/Doc SP.
Expõe o racismo e a injustiça que matam e castigam as populações vulneráveis no Brasil e nos EUA, e faz um retrato íntimo e dilacerante da dor de um pai.
Ao mesmo tempo, o apontamento de uma esperança e de um chamado a partir da força mobilizadora dos movimentos sociais em torno do tema.