“Recife/ Não a Veneza americana/ Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais/ Não o Recife dos Mascates/ Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois”, escreveu Manuel Bandeira no introito de “Evocação do Recife”, de 1925.
No primeiro verso, o nome da cidade plaina solitário na página, sendo sucedido por três negações. Bandeira dizia “não” aos epítomes da capital pernambucana até encontrar o “Recife sem mais nada/ Recife da minha infância”.
O poeta recorreu à intimidade dos primeiros anos de sua vida para definir aquela cidade de geografia acidental, uma planície entre praias e rios cercada por manguezais. Passados quase cem anos desde a publicação do poema, a paisagem é quase a mesma para um artista que lá reside.
A instalação “Ressaca Tropical”, que compõe a retrospectiva dos 15 anos de carreira de Jonathas de Andrade, agora na Pinacoteca de São Paulo, revela que o movimento da maré pode conferir beleza ou destruição à planície aluvial.
Andrade diz “sim” à fratura da cidade. Se o desenho geográfico pouco mudou com o tempo, ali a ruptura não se limita à quebra entre o primeiro e o segundo verso da composição bandeiriana. Evocando o tempo presente, ele denuncia um projeto de modernização incompatível com a realidade tropical do Nordeste brasileiro. O Recife de Andrade espelha a revolução comportamental da última década, que coincidiu com o início de sua trajetória artística.
Com curadoria de Ana Maria Maia, a mostra “Jonathas de Andrade: O Rebote do Bote” questiona as intervenções da arquitetura moderna, um dos resultados da Semana de 1922, que deixou na cidade uma herança material e política, entre os anos 1940 e 1970.
“Esse projeto foi potência e ruína”, conta Andrade, caminhando pelas salas da exposição. “Há nostalgia no meu olhar, mas também sei que todo esse projeto urbanístico foi capturado por um sentimento de classe.” A retrospectiva inclui ainda a obra inédita “Museu da Caravana” e “Teatro das Heroínas de Tejucupapo”, nunca exibida no país.
Concebida há 13 anos, “Ressaca Tropical”, lançado em livro pela editora Ubu em 2016, articula 99 fotografias de quatro arquivos a folhas de um diário encontrado no lixo por uma amiga do artista. A exuberância da cidade está nas imagens em preto e branco do fotojornalista Alcir Lacerda.
Nas tomadas aéreas, a tensão entre natureza e cidade aparece com a violência de edifícios que afrontam o espaço natural. Também o antigo prédio da Sudene, órgão desenvolvimentista criado em 1959 por Getúlio Vargas, surge imponente, mas abandonado.
Abaixo, toda uma narrativa se desenvolve no diário de um rapaz anônimo, em seu “primeiro alumbramento”, como diz aquele poema. Nas páginas de uma agenda dos anos 1970, entramos em contato com os primeiros amores, crises existenciais e desvarios estudantis do autor. Não à toa, um dos arquivos fotográficos recupera cenas da juventude de um garoto, trazendo ares autobiográficos à instalação.
Naquelas cenas, o rapaz aparece em dias de verão sem fim. Rodeado de amigos, ele está mergulhado na piscina, com o sol cortando a água até o mais fundo azul. Seguindo a parede branca, um grupo de jovens se reúne numa noite quente. Alegres, eles organizam uma festa numa sala de estar. Enquanto isso, lemos no diário passagens como “fui com Rosa Maria no cinema Art Palácio” ou apenas “término do namoro com Zeca”.
Ao que se tem notícia, o autor do diário tinha um trabalho monótono, se relacionava com várias meninas e saía às escondidas com meninos. Andrade, de todo modo, não é de Pernambuco. Ele nasceu em 1982 em Maceió e se mudou para o Recife para fazer faculdade, morando ali há 20 anos. Com rápida ascensão no circuito artístico, participou da edição da Bienal de Veneza deste ano, expondo esculturas interativas.
Das lembranças da cidade natal, restaram duas obras. “O Clube”, de 2010, traz quatro fotos do Alagoas Iate Clube, ponto de encontro da aristocracia local nos anos 1970. O estabelecimento está fechado desde 1990, mas sua estrutura em ruínas é ocupada por usuários de drogas e prostitutas que ali se encontram em dias de mar manso.
O artista desceu ao subterrâneo do prédio para retratar o encontro do mar com as palafitas. Nas fotos de “Maré”, de 2014, a água que recua ou inunda serve de metáfora para os desejos avivados no interior do clube. Nesse vaivém, o estudo da sexualidade humana e a afirmação do homoerotismo amadurecem como força libertária de criação artística.
Na obra “Achados e Perdidos”, concluída neste ano, ele cobre um tablado com ladrilho hidráulico, revestimento típico de piscinas, onde se assentam dezenas de quadris masculinos feitos de terracota, vestidos de sungas encontradas pelo artista em vestiários do Recife.
Em seguida, o espectador se depara com algumas cenas do filme “O Mestre de Apipucos”, de 1959, filmado por Joaquim Pedro de Andrade. Nele, Gilberto Freyre passeia por seu casarão na capital pernambucana e lê um livro de Manuel Bandeira. Freyre havia encomendado ao poeta a escrita de “Evocação do Recife”, na ocasião do centenário do Diário de Pernambuco. “É o que a geografia lírica do Brasil tem de maior”, disse, à época, o autor de “Casa-Grande & Senzala”, de 1933.
Subvertendo a hierarquia social daquele tempo, Jonathas de Andrade reproduz um vídeo ao lado de “O Mestre de Apipucos”, em que um homem negro surge altaneiro, imitando os passos de Freyre naquele mesmo casarão. Com ironia, “O Caseiro”, de 2016, evidencia o ponto de vista elitista da interpretação da sociedade brasileira que o escritor havia imaginado.
Afeito a ruínas, Andrade viu o progressivo abandono das certezas do modernismo brasileiro. Nos últimos anos, ele mesmo visitou terrenos baldios do Recife, documentando com uma máquina fotográfica casas no estilo arquitetônico em demolição. Nessas imagens, o artista encontrou vestígios de uma velha ordem, que se localizam entre a nostalgia e a recusa do passado.
Assim como as fotos de “Ressaca Tropical” desbotaram, só sobraram, segundo o artista, as ruínas da utopia modernista. Restam a expectativa pelo futuro e a consciência, latente em Andrade, de que todo tempo será só memória. “Recife/ Rua da União/ A casa de meu avô…/Nunca pensei que ela acabasse!/ Tudo lá parecia impregnado de eternidade”, escreveu Bandeira.
Cultura
Terça-feira, 23 de julho de 2024
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