Cultura
Domingo, 5 de maio de 2024

Livro ‘Aqui. Neste Lugar’ tem beleza luxuriante e violência monstruosa

Maria José Silveira inicia seu romance/rapsódia/fantasia com homenagem amorosa a Mário de Andrade, autor do já canônico “Macunaíma”. Do livro modernista teria se apropriado de expressões populares, personagens do folclore brasileiro, graças e “pequenos achados”, nos diz.
É verdade, mas do herói preguiçoso resta pouco, até porque o forte da autora é sempre falar de mulheres; aos homens, brancos, pretos ou amarelos, cabe o segundo plano. A narrativa diz, às páginas tantas: “Nenhum homem merece viver, nenhum”.
Numa espécie de distopia de tempo passado, “Aqui. Neste Lugar” volta às matas com a natureza de tantas cores, rios, florestas, e habitantes primitivos que lutam pelos espaços e riquezas.
A imaginação da escritora é feérica, desenvolvendo a fantasia em proposta que incorpora personagens que circulavam por Macunaíma e vai adiante.
Macu e Naíma são gêmeos, mas Macu, preto retinto, é quem fala. Naíma ecoa Macu, o mais safado. Saci e Curupira movem-se pela mata com “árvores ricas de seiva, troncos sinuosos, cheiro embriagado”, e a Uiara é capaz de fúria descontrolada, amor e ciúme.
A história é de guerras, cheia de crueldades, as mais terríveis. Povos da floresta, guerreiros sobrenaturais em sua força, monstros ferozes, zumbis, mercenários, perversos de tipos diversos falam a língua da destruição. “Tomar espancar matar”. Filhos contra o pai, irmãos entre si, em combates sem lei. Enfrentam-se, porém, com as Icamiabas, mulheres de um seio só, centauras sobre seus cavalos, donas dos muiraquitãs. Elas não querem a guerra, mas podem vencê-la.
Mulheres fortes, potentes, as Icamiabas usam reprodutores seduzidos, capturados e desprezados para dar continuidade aos batalhões de guerreiras, belas, fortes, com um seio extirpado e orgulhosas de serem mulheres. Os bebês machos são jogados do Despenhadeiro dos Infantes. Só as meninas merecem a proteção da grande-mãe.
As cenas de violência são fortes, fortíssimas por vezes -de uma das mulheres guerreira arrancam a vagina deixando um buraco de vísceras e excrementos entre as pernas.
O horror alterna com um tom de brincadeira que está também presente. Divertidas falas lembram graças de Mário de Andrade, do taibitati de gosto popular aos trocadilhos, e Macu e Naíma desafiam a seriedade. Bons momentos, em que os fracos debocham dos fortes, mas vinganças assassinas lhes deixam pouco fôlego.
É nas descrições da terra virgem, da natureza que derrama suas formas em frutas e plantas, que a linguagem do romance se torna portentosa, ainda que excessiva em alguns momentos. Rios, peixes, águas, céu, tudo parece ainda mais poderoso em meio à vida primitiva de selvagens que lutam num mundo ainda não povoado por seres civilizados.
São cenas cinematográficas, talvez demais, como a de escravos semidesnudos a carregar blocos de rocha dourada ou das quedas d’água cristalinas. Descrições barrocas que se desdobram em visões fantasmáticas.
Nada que possa povoar imagens com tons de fantástico é desperdiçado pela originalidade do romance em uma força mítica. Nem corpos belos ou medonhos, nem o sexo, desejado ou forçado, ficam de fora. A ênfase na exuberância da natureza corre por vezes o risco de se repetir.
Os combatentes em suas perversidades se confundem em suas associações ou inimizades, sem que se identifique com clareza cada povo e os governantes que vão sendo eliminados. Tudo muito forte, mas a intensidade iguala as ambições, só mesmo as razões ou desrazões das mulheres ficam nítidas. Essas sim, personagens provocativas, desafiantes.
Narradora também no feminino tudo observa do além, de um passado dissolvido pelos tempos, é a Ci do Mato que assiste a tudo e, ainda macunaimicamente, tem saudades do tempo passado e seu amado, “Quando ele punha seu chuí de herói. Na minha nalachítchi, ai! Tempo bom!” De outras vivências traz a experiência vã de tentar entender os limites entre o fascínio e o horror.
Nesse romance estranho, pela crueza e pela novidade do impacto que provoca, a força de brasilidades nas falas, as visões de belezas luxuriantes ao lado de violências monstruosas, amor e ódio, coragem e terror partilhados criam uma latino-americanidade primitiva que teria dado origem ao espaço que hoje partilhamos deste lado do mundo. Falar dessas nossas heranças continua sendo o melhor de autora tão fascinante que não precisa de Mário de Andrade para nos comover.

AQUI. NESTE LUGAR
Avaliação Bom
Preço R$ 59,80 (224 págs.)
Autor Maria José Silveira
Editora Autêntica

Fonte: FolhaPress