Cultura
Quarta-feira, 24 de julho de 2024

Evocando cada detalhe de décadas passadas, nostalgia domina mercado audiovisual

Semana conta com estreias de “Top Gun: Maverick”, “Star Wars” e “Stranger Things”

O conforto em tempos difíceis e confusos jaz na lembrança de uma época melhor? Para a parte dominante da indústria audiovisual, sim.

Em dois dias, três estreias evocaram a nostalgia do público: “Top Gun: Maverick”, a série “Obi-Wan-Kenobi” e “Stranger Things”. Seja através de uma trilha sonora cheia de sintetizadores, ou tendo um pézinho no sobrenatural, cada produção tem seus jeitos diferentes de trazer à tona décadas passadas, mais precisamente a década de 80.

Para Talitha Gomes, pesquisadora de Cinema da ESPM/UFF, foi quarenta anos atrás que a porta do pós-moderno se abriu. “Muita coisa se consolida nos anos 80, principalmente as mídias”, diz. “Você tem a TV à cabo e o vídeo doméstico. Não é mais preciso ir até a sala de cinema para consumir entretenimento, o acesso a esse tipo de conteúdo ficou mais fácil”.

Além dessa década específica ficar no imaginário das pessoas justamente pela ascensão das mídias e da tecnologia relacionadas à elas, Talitha observa que as pessoas que estão atualmente no controle da indústria cinematográfica já eram crescidas quarenta anos atrás e viveram aquele tempo.

É o caso de James Gray, diretor do filme “Armageddon Time”, que é ambientado nos anos 80 e trás críticas ao racismo da era Ronald Reagan nos Estados Unidos.

Acontece a mesma coisa com Joseph Kosinski, diretor do novo “Top Gun”. Substituto do diretor do longa original, Tony Scott, morto em 2012, Joseph tinha 12 anos quando viu pela primeira vez o Tom Cruise de jaqueta e óculos escuros.

Um visual que foi imitado por muitos e é reconhecido até hoje. Trazer uma continuação daquele sentimento rebelde que o personagem Pete Maverick Mitchell representava em “Top Gun” é exemplificar que esse tipo de atitude ainda tem espaço nos dias de hoje, mas, claro, com consequências.

Quando muitos reclamam da “lacração” vista nas produções audiovisuais atuais, que colocam em evidência personagens mulheres, negros ou gays, a continuação de “Top Gun” parece um respiro, certo? Uma volta àquela macheza vista nos anos 80, do homem rebelde, sem medo, que pilota caças e consegue a garota dos sonhos.

Ledo engano. Em “Top Gun: Maverick”, a nostalgia é evocada com referências, não com reproduções. Sim, há pilotos de caças, sim, há o casal romântico, mas há, também, homens aflitos com uma missão potencialmente suicida delegada a eles, há a mocinha dona do bar local, que faz Maverick pagar uma rodada para dezenas de pessoas assim a aparência dela é elogiada.

Produzindo uma continuação de um filme 36 anos depois, Tom Cruise brinca com a nostalgia do público sem esquecer que os tempos, afinal, mudaram. “Remakes e continuações são produções afetivas que religam a gente a um certo imaginário onde nossos desejos seriam preenchidos”, diz Talitha Gomes.

Tom Cruise em Top Gun: Maverick
34 anos depois do original, Tom Cruise volta a interpretar Pete ‘Maverick’ Mitchell, na sequência de Top Gun / Foto: Scott Garfield/ 2018 Paramount Pictures

Outro exemplo é Star Wars. Com a “marvelização” dos cinemas e plataformas de streamings, diversas séries da saga começaram a surgir: “Obi-Wan Kenobi”, que estreia nesta sexta-feira (27), é uma delas.

A produção conta a história do mestre de Luke Skywalker e sua observação à distância do futuro jedi, situação da qual tivemos um vislumbre no primeiro filme de todos, “Star Wars – Uma Nova Esperança”, de 1977.

A nostalgia aqui é explorada de outra forma: um público consolidado ao longo dos anos 80 retorna a este universo trazendo consigo os novos fãs da saga. São as influências culturais que passam de um jeito hereditário.

Do fim dos anos 70 até aqui foram 9 filmes principais, diversos filmes spin-off e dezenas de séries derivadas da história original. A franquia consegue se reinventar mantendo suas raízes, mas mudando de folhagens, frutos e flores, o que, por vezes, acaba provocando a ira dos fãs.

Porém, convenhamos, apesar de discordâncias com o produto apresentado, os mesmos fãs não deixam de consumí-lo, seja por uma sede de novas narrativas, ou por pura nostalgia no caso dos mais velhos.

Para Thalita, a mercantilização da nostalgia é muito conveniente para o audiovisual. “Nós vemos muita produções que são concebidas já pensando nesse potencial nostálgico, de atrair o público pelo sentimentalismo”, diz. “É especialmente lucrativa em épocas mais sombrias, onde precisamos relembrar algumas histórias para um conforto próprio”.

Uma produção da lista, porém, conseguiu evocar os anos 80 apenas com referências de cinematografia, moda e música, sem nenhum tipo de saudade envolvida: Stranger Things, cuja 4a temporada estreia nesta sexta-feira (27).

Se trata de uma série infanto-juvenil que se passa justamente em 1983 e conta a história de um grupo de crianças, agora adolescentes, que percebem que o laboratório da cidade onde vivem abriu um portal para uma dimensão paralela: o chamado Mundo Invertido.

Filmes como “E.T” (1982) e “Conta Comigo” (1986) são referências mais do que identificáveis para quem já viu essas produções, mas a série conseguiu atrair o público jovem que passou bem longe dos anos 80, com a estética e até atores que ficaram famosos na década, como Winona Ryder.

“A gente vê que existe um imaginário que é passado por tabela”, diz Thalita, “a dinâmica de nostalgia afetiva passa justamente pelos laços que formamos: “foi minha mãe que me mostrou esse filme, meu pai, meu irmão mais velho…”

Seja estrando em mais de 4 mil salas de cinema na América do Norte, ou sendo exibida na plataforma de streamings com mais assinantes do mundo, a nostalgia é um sentimento extremamente lucrativo para a indústria audiovisual e, enquanto o público quiser acessar o passado ao invés de se entregar para o total desconhecido, narrativas saudosistas terão cada vez mais espaço.

Fonte: CNN