Cultura
Quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Documentário se perde em volta à Mangueira três décadas depois

 Em 1992, o documentário “Mangueira do Amanhã” acompanhou crianças da comunidade carioca que participavam da escola de samba mirim, aprendendo com os bambas da Velha Guarda algumas das habilidades que o Carnaval exige.
O vídeo-documentário de cerca de 30 minutos mostra meninas que querem ser passistas ou porta-bandeiras e meninos dando seus primeiros passos como ritmistas e puxadores de samba.
Quase 30 anos depois, a diretora Ana Maria Magalhães volta à Mangueira para mostrar o curta àquelas crianças, hoje adultos, e para mostrar ao espectador o que cada uma delas está fazendo em “Mangueira em 2 Tempos”, que estreia nos cinemas nesta quinta.
Felizmente, o novo filme escapa do ar condescendente do primeiro, que misturava um olhar de exotismo digno de “favela movie” com um certo sopro de esperança “We Are the World”, de quem parecia acreditar que o samba salvaria aquelas crianças de todo o mal que o filme parecia ver ao redor delas.
Felizmente também, o século 21 permite que o novo filme problematize aquilo que os olhos de 1992, acostumados à banheira do Gugu e a concursos de crianças dançando o Tchan nas tardes de domingo, talvez não pudessem ver – que as escolas de samba eram extremamente machistas.
Embora uma das meninas retratadas na escola mirim Mangueira do Amanhã fosse uma das cantoras do samba enredo, sobre a Turma da Mônica, a elas cabiam basicamente os papéis de passistas, rainha de bateria ou porta-bandeira.
A cantora Alcione, uma das madrinhas do grupo infantil, conta que, à época, quis fazer uma escolinha de bateria para meninas, para que elas aprendessem música, mas que foi proibida pela Velha Guarda da escola, que dizia que a bateria só podia ter homens.
A parte mais emocionante do novo documentário é quando somos apresentados a uma das mulheres da bateria da Mangueira, hoje com várias musicistas, e descobrimos que ela é filha de Erika Andreia, uma das meninas que dançava como passista mirim no primeiro filme.
Mas o longa é mesmo de Mestre Wesley, atual mestre de bateria da Mangueira, campeão com a escola em 2019, em desfile que o filme acompanha. Quando menino, ele fazia parte da escola mirim e foi um dos personagens do documentário de Magalhães. Ele e Buí do Tamborim, que passou a morar na China fazendo apresentações em churrascarias de cardápio brasileiro, são os meninos que seguiram no samba.
As meninas, hoje mulheres, se distanciaram da escola, seja pelas obrigações da maternidade, seja pela religião. Há ainda um outro menino, agora ausente, sobre o qual somos informados da morte violenta aos 23 anos. Mas é justamente por ser o filme de Mestre Wesley sem assumir ser que “Mangueira em 2 Tempos” se perde.
De início, achamos que pode ser um documentário à la Eduardo Coutinho, com entrevistas reveladoras e tocantes com os mesmos personagens do filme de 1992. Mas somos interrompidos por ensaios de estúdio de Wesley com os músicos Fernando Moura e Carlos Malta, que nada têm a ver com a história inicial.
Então aceitamos o desvio e achamos que será Wesley a estrela, mas surge Ivo Meirelles, para falar, por bastante tempo, sobre o Funk’n’Lata, grupo de percussão do qual Wesley fez parte, e fazer reflexões sobre como o funk é menosprezado da mesma forma como o samba foi um dia. E surge, numa conversa entre as mulheres, um debate sobre gravidez precoce que parece tangenciar algum outro tema que nunca se impõe. E aí o espectador está confuso.
Não se trata de Mangueira, embora pareça se tratar. Não se trata de histórias de vida de personagens antes crianças, embora pareça se tratar. E não se trata nem mesmo da trajetória de Wesley, embora pareça muito se tratar. Ao não assumir um foco, o filme perde a atenção e acaba se excedendo em cenas enfadonhas, sobretudo essas de ensaios em estúdios.
Fosse assumidamente a história de Wesley, não perderia a grandeza. Investigar como nasce e cresce um grande músico do samba no seio de uma escola como a Mangueira seria de grande interesse. Se aprofundar no período em que ele esteve fora da escola aparentemente por ter sido rechaçado por fazer dinheiro em outros Carnavais pelo país e no porquê de ter sido escolhido para mestre de bateria num momento em que a escola aparentemente queria se reinventar poderia render minutos preciosos ao documentário.
Fica ao menos o sabor da quadra da Estação Primeira lotada nos ensaios e da Marquês de Sapucaí cheia de emoção num desfile.

Fonte: FolhaPress/Ursúla Passos