Cultura
Sexta-feira, 19 de abril de 2024

‘O Peso do Talento’ é pouco inspirado e tem soluções simplistas

Rezava a “política dos autores” difundida nos anos 1950 pelos jovens turcos da revista francesa Cahiers du Cinéma que uma obra ruim de um autor era muito mais interessante do que uma obra boa de um não autor. Os críticos da revista –François Truffaut, Jacques Rivette, Éric Rohmer e Jean-Luc Godard à frente– começaram então a dividir cineastas do mundo todo segundo essa categorização.
Autor é aquele cujas obsessões e interesses pessoais estão presentes em todos os seus filmes, por maior que seja a variação entre um e outro. Howard Hawks era autor, John Huston, não.
O segundo dançava conforme a música, realizando tanto filmes de talento como filmes facilmente esquecíveis. Já o primeiro era um verdadeiro autor, com um gosto especial pela exploração da dicotomia entre civilização e barbárie e a ideia do grupo masculino diante de alguma situação.
Nicolas Cage se tornou um dos exemplos mais estranhos de ator-autor. Nos filmes em que atua, sobretudo nos últimos anos, seus trejeitos e sua persona cinematográfica acabam por dominar a cena, cabendo ao diretor usar ou dosar essa capacidade.
Diretores como Brian De Palma e John Woo, autores de, respectivamente, “Olhos de Serpente”, de 1998, e “A Outra Face”, de 1997, foram brilhantes nesses filmes protagonizados por Cage, em que a ilusão e a manipulação estão presentes o tempo todo e a atuação exagerada do ator era bem-vinda. Mas nesses casos a autoria da direção falava mais alto.
Nos últimos anos, Nicolas Cage parece ter acreditado demais em sua persona cinematográfica, ao mesmo tempo em que reduziu o grau de exigência na hora de dizer “sim”. Anda fazendo filmes que mesmo os fãs têm dificuldade de defender. Por incrível que pareça, isso contribuiu ainda mais para sua fama, e o recente “O Peso do Talento”, de Tom Gormican, baseia-se justamente nessa alavanca atual.
Na trama, Cage é ele mesmo, ou uma versão dele mesmo chamada jocosamente Nick Cage: um ator em decadência que está disposto a se aposentar. Ele aceita, por causa das dívidas, aparecer no aniversário de um milionário espanhol, Javi, um charmoso playboy interpretado por Pedro Pascal, mesmo sem saber o que é para ele fazer.
Acontece que Javi é cinéfilo e roteirista, e tem o sonho de fazer um filme com seu ídolo. Em seu casarão em Mallorca, ele mantém uma sala dedicada ao ídolo, com roteiros, bonecos e artefatos usados por Cage em diversos filmes.
Acontece também que Javi é suspeito de ser um grande contrabandista de armas perseguido pela CIA. Com isso, Cage é intimado a colaborar com os agentes secretos para conseguir provas do contrabando e do paradeiro de uma menina que foi sequestrada como maneira de forçar a retirada da candidatura de um político catalão.
Cage e Javi logo se tornam grandes amigos, combinando até mesmo no entendimento de que “As Aventuras de Paddington 2” seria um dos maiores filmes já feitos. As citações de filmes abundam, por sinal, e vão desde “O Gabinete do Dr. Caligari”, clássico alemão de 1920, dirigido por Robert Wiene, a “O Professor Aloprado”, de Jerry Lewis, 1963.
Além, obviamente, de inúmeras piscadelas a diversos filmes com Cage no elenco. É uma diversão para seus fãs, que ficam pescando as referências jogadas pela trama.
Este novo filme, contudo, não sobrevive à premissa inicial. O desenvolvimento da trama é pouco inspirado, com soluções simplistas e dramaturgia pobre. Até o duplo que aparece para aconselhar e atazanar o astro é mal construído e mal interpretado pelo próprio Cage.
Suas aparições beiram o patético. No conjunto, estamos na média de produções recentes com o astro, entre os hediondos “Mandy” e “Willy’s Wonderland” e o irregular “Pig”, passando pelo talentoso, mas problemático “A Cor que Caiu do Espaço”.
“O Peso do Talento” parece seguir o padrão Nicolas Cage dos últimos anos, de confiar demais que sua persona cinematográfica consiga carregar o filme inteiro nas costas, sem a necessidade de um roteiro mais pensado e de uma direção mais precisa. Pena que esses fundamentos cinematográficos ainda sejam necessários dentro desse tipo de registro mais comercial.

O PESO DO TALENTO
Onde: Espanha/EUA/Itália, 2020
Elenco: Nicolas Cage, Pedro Pascal, Tiffany Haddish
Direção: Tom Gormican
Avaliação: Regular

Fonte: FolhaPress/Sergio Alpendre