Cultura
Sexta-feira, 17 de maio de 2024

‘Doutor Estranho no Multiverso da Loucura’ brilha com Sam Raimi

 Há quase exatas duas décadas, Sam Raimi levou para as telas de cinema a primeira adaptação de “Homem-Aranha”. Sua mistura inusitada do melodrama de Douglas Sirk e de ação cartunesca ajudou a pôr em movimento a febre do gênero de super-heróis que se consolidou com o chamado Universo Cinematográfico Marvel.
Agora, depois de um hiato de quase dez anos, ele volta ao posto de direção para comandar “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” e testa seu estilo dentro da fórmula Marvel. Ou melhor, testa a própria fórmula Marvel dentro do estilo de um inegável autor cinematográfico.
Se outros realizadores consagrados e oscarizados entraram na ciranda das superproduções do estúdio sem experiência prévia com o gênero, Sam Raimi não só o revolucionou como ainda mantém sua trilogia estrelada por Tobey Maguire entre as melhores obras que ele pode oferecer.
O novo filme, protagonizado por Benedict Cumberbach, serve então como um ótimo termômetro da extensão da liberdade criativa dentro do universo de filmes comandado a mão de ferro pelo produtor Kevin Feige.
O resultado? Digamos que num multiverso de infinitas possibilidades, poderíamos estar num lugar um pouco melhor.
No filme, o ex-mago supremo precisa impedir que a Feiticeira Escarlate, vivida por Elizabeth Olsen, sacrifique a jovem America Chavez –a jovem Xochitl Gomez– para roubar seu poder de viajar entre universos e assim pôr em prática seu desejo materno custe o que custar.
Se parece confuso, é porque é mesmo -você precisa ter acompanhado a série WandaVision, do ano passado, para entender esse pano de fundo. O que se segue é uma perseguição entre universos, “fan service” e lapsos de maestria da narrativa visual pelas mãos do diretor.
Sam Raimi começou na década de 1980 quando, com só 21 anos, lançou o visceral terror “A Morte do Demônio”. O filme era um tour de force de inventividade visual com seus ângulos de câmera inusuais, humor pastelão e um sem-número de soluções brilhantes e cinéticas, para compensar a precariedade do seu valor de produção.
O resultado foi uma mistura de George Romero –o mestre por trás de “A Noite dos Mortos-Vivos”–, Buster Keaton e “Os Três Patetas”, mas também sinalizava um talento que exprimia uma força juvenil, uma vontade de explorar o léxico visual do cinema comercial sem limites, que, conforme amadureceu não perdeu sua potência, mas a ampliou para outros gêneros –culminando na aclamada primeira trilogia do “Homem-Aranha”.
O melhor de “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” vem quando há espaço para o diretor exercitar seu estilo e referenciar sua obra.
Há o terror de suspense visual inventivo, o humor físico e o uso e abuso das ferramentas cinéticas do cinema comercial –um duelo entre duas versões diferentes do Doutor Estranho, por exemplo, tem como arma as notas musicais da trilha sonora, decompondo e dissecando os elementos da cena enquanto a luta segue.
Ainda assim, de longe, Raimi é o melhor diretor a trabalhar no Universo Cinematográfico Marvel porque é também o único que conseguiu pulverizar um naco da sua identidade de forma perceptível.
Mas ele ainda precisa prestar contas à fórmula que paira sobre o estúdio como terror cósmico. O excessivo uso de ironia pós-moderna, as exposições sem fim, a necessidade de contextualizar o filme dentro da sua relação com os outros e elaborar o que acontecerá nos próximos, além das participações especiais gratuitas (mas obrigatórias), arrastam o longa para o inferno –ou infinitos infernos.
Como os personagens do filme, precisamos aprender a conviver com a possibilidade de estar no pior cenário possível. A seguir em frente deixando para trás a nostalgia de promessas e as aspirações não cumpridas e reconhecer que estamos presos no universo do Universo Cinematográfico Marvel.

DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA
Quando: Estreia na quinta (8)
Onde: Nos cinemas
Classificação: 14 anos
Elenco: Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen e Xochitl Gomez
Direção: Sam Raimi
Avaliação: Bom

Fonte: FolhaPress/João Montana