Cultura
Quinta-feira, 2 de maio de 2024

‘O Bom Doutor’ é óbvia repetição de ‘Intocáveis’ sem carisma de Omar Sy

Já que “Intocáveis” se tornou há dez anos um sucesso mundial, era fatal que um dia se tentasse voltar à fórmula. “Intocáveis”, para quem não lembra, promovia o improvável encontro de um bilionário vitimado pela paralisia total do corpo e um jovem negro, razoavelmente desencontrado no mundo.
“O Bom Doutor” também toma por base um encontro improvável. O doutor Manou-Mani, papel de Michel Blanc, é um velho e neurastênico médico que trabalha para uma espécie de Uber médica, em que recebe chamados por aplicativo e vai ao doente. Solitário, ele se torna o único plantonista numa noite de Natal.
Por acidente, literalmente, sua vida cruza com a de Malek Aknoun, vivido por Hakim Jamili, um entregador de comidas do Uber. Como na trombada Malek tem a bicicleta danificada, passa a repartir o carro do médico em suas entregas. Malek é um tanto atrapalhado, de maneira que a horas tantas ao dar uma injeção no médico, acerta nele um nervo, e o homem não pode mais andar.
A partir daí Malek fica encarregado de fazer as consultas, usando um fone através do qual escuta as instruções que Manou-Mani repassa a ele pelo celular. O expediente tem duas funções imediatas -suprir a ausência do médico de verdade e, claro, propiciar o humor que virá das trapalhadas que Malek fizer durante as consultas.
As semelhanças estruturais entre os dois filmes são tão óbvias quanto suas diferenças. No primeiro, o sujeito deslocado era Omar Sy, um ator tremendamente carismático. E negro, o que de imediato apresentava a questão do racismo (ou antes, o racismo em questão). Havia também o abismo das distâncias sociais -o rico e o pobre a descobrir, na convivência, que pertencem à mesma humanidade e tal e coisa.
Aqui o abismo social não é tão profundo. O médico é tão escravo quanto o jovem entregador. Okay, tocamos aqui os abismos do capitalismo neoliberal, mas será que isso basta para sustentar um filme?
Claro, Michel Blanc é um ator sempre ótimo. Mas logo o protagonismo real deve passar a Malek. E Hamim Jamili, por simpático que seja, está longe de ter o carisma de Sy. E também demora um bom tempo para se entender com seu personagem.
Existe uma terceira e decisiva personagem, Rose, papel de Solène Rigot, ex-namorada do filho de Manou-Mani. Ela poderia ser a chave da aproximação entre os dois homens, por razões que não se pode expor aqui, mas seu personagem é um tanto sumário para função tão importante.
Houve um problema no roteiro? Ou na montagem? Ou a atriz não rendia o suficiente? Não importa. A personagem é fraca, sua relação com os dois protagonistas não se sustenta bem nas pernas, o que leva o filme a um final um tanto postiço.
Dito isso, “O Bom Doutor” é um filme que se justifica mais no streaming ou na TV do que em cinemas. É uma diversão simpática para o espectador que, descuidadamente, liga em casa o seu aparelho. É improvável que o sujeito que sai de casa em busca de uma diversão cinematográfica se contente com o que o filme de Tristan Séguela dá a ver.

O BOM DOUTOR
Onde: Em cartaz nos cinemas a partir de quinta (9)
Elenco: Michel Blanc, Hakim Jemili, Solène Rigot
Produção: França, 2019
Direção: Tristan Séguéla
Avaliação: Regular.

Fonte: FolhaPress/Inácio Araujo