Cultura
Terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Vida da escritora Maura Lopes Cançado inspira romance sobre loucura

JOÃO PERASSOLO
PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Depois de tentar se matar durante um surto psicótico, Laura se interna voluntariamente em um hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, aos 25 anos.
A internação aconteceu após décadas tomando remédios, pois ela era louca – ou assim sua família lhe dizia. “A primeira vez que eu ouvi a frase você é louca foi dentro da minha casa e não tomei como acusação”, reflete.
Apesar da pouca idade ao ingressar no manicômio, a protagonista de “A Origem da Água” já tinha, mesmo jovem, o equivalente a uma vida em experiências. Criada em uma fazenda, casou cedo e teve um filho. Em seguida, lidou com a morte do pai, estudou filosofia, desenvolveu sua escrita, morou no Rio de Janeiro e aprendeu a pilotar avião –tudo isso no ambiente conservador da primeira metade do século 20.
É esta mulher dividida entre as obrigações de uma sociedade patriarcal e a vontade de explorar o mundo que aparece no romance de estreia de Ana Cristina Braga Martes.
“Acho que sempre vou escrever a partir da vivência que tenho como mulher, e essa vivência é muito marcada pela exclusão, pela imposição de um papel inferior à mulher”, diz a autora. Embora a protagonista não fale deste assunto abertamente, ela é “uma mulher que piora ainda mais neste sentido quando é tachada de louca”, completa.
A vida de Laura foi inspirada na biografia da escritora mineira Maura Lopes Cançado. Nascida em São Gonçalo do Abaeté, em 1929, no decorrer dos anos Cançado foi internada em hospícios de Minas Gerais e do Rio. Seu nome acabou manchado por décadas na história da literatura brasileira, em parte pelo fato de ter matado uma interna estrangulada com um lençol e ter sido condenada em um manicômio judiciário.
Admirada por nomes como Carlos Heitor Cony e Ferreira Gullar, os dois únicos livros de Cançado – o diário “Hospício é Deus”, escrito em 1959 e publicado em 1965, e a coletânea de contos “O Sofredor do Ver”, de 1968 – ganharam novas edições há cinco anos, pela Autêntica. A reedição dos volumes da autora, que morreu em 1993, trouxe o tema da loucura novamente à tona.
Martes afirma ter ficado impressionada com a maneira com que Cançado era ao mesmo tempo louca e lúcida nas suas obras. Doentes mentais crônicos, casos para os quais a medicina não tem explicação, conseguem “captar coisas que de um modo geral as pessoas não veem ou escondem de si mesmas, mas as chamadas pessoas loucas não só veem como apontam e denunciam”, argumenta a autora.
Ela acrescenta que começou a enxergar na loucura não apenas a morbidez, mas também a pulsão de vida e a criatividade de transtornos mentais que levam seus enfermos a serem excluídos do convívio social. Em “A Origem da Água”, o texto faz o leitor sentir como a personagem, acompanhando seus arroubos de fúria no hospício, sua emoção ao descobrir a própria sexualidade e a ansiedade com que antecipa as aulas de aviação.
A história de Cançado, contudo, é mais do que um espectro que se revela pela vida da protagonista –a escritora é lembrada com frases e expressões em itálico, extraídas de sua obra e inseridas no fluxo do texto. Um exemplo é “paredes de vidro”, que resume a ambivalência de Laura, apta a enxergar com transparência o mundo à sua volta mas de certa forma separada dele pela psicose.
“A Origem da Água” começou a tomar forma quando Martes cursou a formação de escritores do Instituto Vera Cruz, em São Paulo, e levou entre quatro e cinco anos para ser finalizado. Socióloga, a autora fez carreira pesquisando a imigração brasileira nos Estados Unidos, sobretudo na região de Boston, onde estudou parte de seu doutorado no MIT, o Instituto de Tecnologia de Masschussetts.
O romance é sua primeira incursão na literatura, trabalho ao qual se dedicou após quase duas décadas como professora e pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas. Ela se diz atraída pela liberdade de escrever ficção, campo no qual sua vivência pessoal pode ser aproveitada de alguma forma.
“O sociólogo precisa ter objetividade. Acho que o espaço da literatura é o espaço também da subjetividade.”