Cultura
Quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Klondike: A Guerra na Ucrânia’ explode em relevância com invasão russa

 Em janeiro deste ano, quando lançou “Klondike: A Guerra na Ucrânia” sob críticas favoráveis na meca do cinema independente, o Festival Sundance, nos Estados Unidos, a cineasta ucraniana Marina Er Gorbach buscava duas coisas.
Primeiro, fazer um alerta ao mundo, em especial a Washington, sobre o conflito civil meio esquecido desde 2014 de Kiev com separatistas apoiados por Moscou no leste do país. Segundo, que a Ucrânia poderia criar um produto de qualidade sobre o tema -que estreia nesta quinta-feira no Brasil.
“Para mim, a guerra é sobre isso, criar e destruir”, disse Er Gorbach em uma conversa por Zoom na manhã desta segunda. O que ela não esperava era que, a despeito da boa receptividade ao filme, segundo colocado na mostra Panorama da Berlinale deste ano, seria o próprio Vladimir Putin o agente a catapultar a relevância de sua obra um mês depois de seu lançamento em Sundance, quando invadiu a Ucrânia.
Com efeito, a criação é o centro da obra -Irka é uma jovem grávida casada com Tolik, um homem mais velho e algo embrutecido pelo ambiente. Eles vivem num vilarejo sob a sombra crescente da guerra civil em 2014, e a gestação em fase final serve de metáfora sobre o mundo insondável que está por vir em meio ao caos à violência.
Enquanto Er Gorbach falava, forças russas e ucranianas se digladiavam no campo descrito na tela -o Donbass, o leste russófono da Ucrânia que há oito anos virou palco da disputa entre os rebeldes e o governo central. A partir de um cessar-fogo em 2015, o embate ficou congelado, ainda que somando vítimas à sua lista de 14 mil mortos até 21 de fevereiro deste ano.
Naquele dia, Putin realizou o sonho de Sania, o personagem que acredita que os russos o farão “viver como um nobre”, ao reconhecer a independência das duas autoproclamadas repúblicas da região. Três dias depois, os canhões abririam fogo.
“A guerra era mais ou menos conhecida na Europa, mas não nos Estados Unidos. Por isso trabalhamos pelo título”, diz Er Gorbach. Klondike é o nome da região na fronteira do Canadá com o estado americano do Alasca que sediou a mais famosa corrida do ouro do século 19, e a cineasta quis estabelecer um paralelo com o Donbass, que nas décadas em que tudo estava sob o domínio da União Soviética era uma rica região industrial e produtora de carvão.
Mais do que isso, ela coalhou seu drama de guerra com iscas para o espectador ocidental, a começar pelo fato que permeia toda a história -a derrubada por engano, presumivelmente por separatistas usando um sistema antiaéreo emprestado dos russos, de um Boeing-777 da Malaysian Airlines que ia de Amsterdã a Kuala Lumpur, matando 298 pessoas.
“O dia 17 de junho, quando houve a derrubada, é meu aniversário. Algo me empurrou para contar isso”, disse ela da Turquia, onde está com o marido, e coprodutor do filme, Mehmet Er. Ela filmou a ação numa região entre Odessa e a Moldova, no oeste ucraniano, representando os campos de Grabove, no Donbass ora ocupado.
A dinâmica familiar crescentemente estressada entre Irka e Tolik é violada com a entrada em cena de Iarik, o irmão da grávida. “Eles disputam o amor daquela mulher, cada um de sua forma”, diz a diretora, sendo gentil com o grau de agressividade quando os três estão em cena.
O que não tira o caráter feminista e feminino do filme, guiado pela percepção da protagonista, vivida pela ótima Oxana Tcherkachina, de um inconformismo inútil quando sua sala de estar é explodida por um morteiro ou na angustiante cena final. Irka se filia à linhagem das estoicas desafiadoras num gênero que usualmente relega mulheres a papéis figurativos, emulando a estrutura de poder da guerra em si.
“Klondike”, é óbvio, tem lado. Ninguém suspeita que os russos e seus aliados possam ser os heróis, mas o instinto de sobrevivência de Tolik acaba o tornando uma peça cooptável só até certa medida. A maneira com que ele tenta proteger Irka dos horrores, ao por exemplo esconder o corpo de uma passageira do avião que caiu no seu quintal, é ao mesmo tempo tenra e patética.
Até irromperem na tela, os tons políticos e a guerra em si fazem parte de um grande diorama, ao mesmo tempo naturalista e algo distante. Cenas que seriam o ponto de venda de uma produção hollywoodiana, como a queda do avião, se desenrolam no horizonte, como subtexto para o drama humano em primeiro plano -Tolik quer tirar sua mulher da vila, e ela quer seguir com alguma normalidade.
O Buk-M1, a bateria de mísseis antiaéreos que derrubou o Boeing, está lá, percorrendo os campos quase como um animal perdido. “Eu não quis promover a guerra”, diz Er Gorbach. Não espere nenhum “O Resgate do Soldado Ryan”, de 1998, aqui, mas talvez algo no diapasão dos filmes da ex-Iugoslávia sobre a dissolução do país, como “Antes da Chuva”, de 1994.
O roteiro não é isento de falhas, como a longa e inconclusiva cena em que os pais de uma vítima do ataque são guiados pelo casal pelo campo cheio de destroços, ou o desenvolvimento insuficiente tanto de Sania, o adesista, quanto de Iarik, no papel do nacionalista ucraniano.
Marina Er Gorbach, de 40 anos, demonstra um misto de orgulho e vergonha acerca do “timing” de seu filme. Lembra às lágrimas da família que deixou em Kiev e do fato de que boa parte do elenco, incluindo os atores que vivem Sania, papel de Oleg Sevtchuk, e Iarik, papel de Oleg Scherbina, além do diretor de fotografia Sviatoslav Bulakovski, estão lutando na guerra.
Ela era uma crítica do presidente Volodimir Zelenski, ele mesmo um ator de comédias que vivia um chefe de Estado acidental numa série de TV. “Mudei minha opinião quando ele resolveu ficar em Kiev [após ter uma oferta americana para fugir, no começo da guerra]”, diz ela. “Depois que a guerra acabar, aí há muito a resolver.”
Er Gorbach também aponta para o Ocidente. “Todos são responsáveis. As sanções duras deveriam ter começado em 2014. Deixaram Putin ocupar o Donbass, tomar a Crimeia, derrubar o avião”, diz.
Ela se uniu a outros seis diretores ucranianos em um manifesto pedindo o boicote à produção cultural atual da Rússia. “Não se trata de cancelamento da cultura russa. Pedimos uma pausa. Quando artistas russos dizem que não têm nada a ver com a guerra, isso é utopia”, diz.

KLONDIKE: A GUERRA NA UCRÂNIA
Quando: Nos cinemas a partir de quinta (5)
Onde: Ucrânia, 2022
Elenco: Oxana Cherkashyna, Sergey Shadrin e Oleg Scherbina
Direção: Maryna Er Gorbach

Fonte: FolhaPress/Igor Gielow