Internacional
Quinta-feira, 28 de março de 2024

Radicalização sobrevive no ‘Bruxelistão’, berço de terroristas na Europa

Fadila Maaroufi tinha 39 anos quando a “grande noite negra” desceu sobre a cidade em que ela nasceu e foi criada. Foi depois daquela sexta-feira-13 (de novembro de 2015), na qual 130 morreram e 500 foram feridos num ataque terrorista em Paris, que os olhos do mundo se fixaram em Bruxelas.
Da capital belga haviam saído ao menos 4 dos 11 homens com fuzis e cintos explosivos que provocaram a tragédia na capital francesa. Entre eles está o único terrorista sobrevivente, Salah Abdeslam, que na abertura de seu julgamento, na quarta (8), declarou-se um “soldado de Alá” quando perguntaram qual era a sua profissão.
A Bruxelas em que Maaroufi nasceu e cresceu foi cenário dessa trama, mas investigações indicam que já estava conectada a ataques na Europa e fora dela, até mesmo ao atentado contra as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001.
Naquele ano, teriam saído da comuna os assassinos do rebelde anti-Talibã Ahmed Shah Massoud, morto supostamente a mando de Osama bin Laden, então líder da Al Qaeda. Também de lá era um dos terroristas que explodiram bombas em quatro trens de Madri, matando 191 pessoas em 2004.
O termo “Bruxelistão”, usado para designar bolsões de radicalização islâmica na capital belga, surgiu a partir de 2016, quando as pistas de ataques na França e na Bélgica começaram a apontar para a cidade -mais precisamente para a comuna de Molenbeek, uma das 3 entre as 19 comunas que concentram 80% dos 250 mil muçulmanos de Bruxelas.
Mas a islamização da cidade vem de muito antes, relata o antropólogo e sociólogo Felice Dasseto, professor emérito da Universidade Católica de Louvain e fundador do Observatório Social Europeu.
Nos anos 1980 e 1990, na Bélgica e em outros países europeus, “desenvolveu-se um entusiasmo religioso que encontrou sua expressão na construção de mesquitas e na exacerbação de um islã normativo, que regula o que é halal [lícito] e se baseia em normas de comportamento e devocionismo”, escreve.
Propagou-se um tipo de islamismo que, se não era em si radical, “preparou o terreno no qual o radicalismo se enraizou”. Enraizou-se, vingou e deu frutos, a julgar pelos números da década passada.
Quando a polícia belga passou a bater de porta em porta no “cinturão islâmico” de Bruxelas, atrás de envolvidos nos ataques de 2015 e 2016, 22.668 inquéritos foram abertos. Cerca de 1.600 organizações foram investigadas, e mais de 150, consideradas ligadas ao terrorismo, além de 72 indivíduos.
DE VOLTA DA GUERRA SÍRIA
Foi também a partir de 2016 que governos de vários membros da UE criaram dezenas de “programas de desradicalização” voltados principalmente para o que era considerado então o maior perigo à segurança europeia: cidadãos que voltavam a seus países de origem após combater ao lado do Estado Islâmico, na Síria ou no Iraque.
O alvo, porém, estava errado, dizem especialistas em antiterrorismo e extremismo. Passados mais de cinco anos, a radicalização sobrevive em várias cidades europeias, infiltrada no cotidiano e nas instituições, principalmente de comunidades de imigrantes muçulmanos.
“A ideologia islâmica continua a produzir jihadistas [na França e na Béglica, islâmico é um termo usado para os fundamentalistas, não para todos os seguidores do islamismo]”, diz Maaroufi, que aponta a Bélgica como um dos países que ainda hoje mais produzem ativistas radicalizados.
Os fundamentalistas investem em todas as esferas da sociedade -escola, universidade, política, prisão, polícia, associações- para impor um novo modelo de sociedade, totalitário, diz ela.
De uma família berbere marroquina na Bélgica há três gerações, Maaroufi nasceu em Anderlecht, uma das comunas do “cinturão islâmico” de Bruxelas, e desde pequena experimentou “de dentro” o radicalismo religioso. “Ouvi a pregação de imãs desviados, os discursos obscurantistas nas famílias”, diz a educadora, que há um ano e meio criou o Observatório de Fundamentalismos, uma entidade que articula estudos, pesquisas e ações contra a radicalização e a violência.
“Não pude mais ficar em silêncio porque vi o impacto que isso teve na sociedade em que vivo, as consequências destrutivas do radicalismo em minha família e na minha vizinhança”, afirma ela.
O impulso não foi apenas da realidade privada, mas do que viu nas prisões em que trabalhou como assistente social –onde, entre outros jihadistas, conversou com um dos réus do ataque em Paris. “Vejo a tremenda pressão que os presos muçulmanos sofrem não apenas de outros prisioneiros radicalizados, mas também de imãs fundamentalistas que têm entrada autorizada em todas as prisões”, diz Maaroufi.
NEM DESRADICALIZAÇÃO, NEM DESENGAJAMENTO; PREVENÇÃO
Fadila argumenta que a prevenção é fundamental, porque, depois de doutrinada, é muito difícil que uma pessoa se desradicalize. Especialistas que já trabalharam em divisões de combate ao terrorismo na França e na Bélgica concordam com ela. Além disso, é muito difícil medir a eficácia dos programas com rigor científico, argumenta o islamologista Alain Grignard, professor da Universidade de Liège, na Bélgica.
“A pessoa está realmente desradicalizada ou está fingindo? Em quanto tempo é possível dizer que não representa mais perigo? Há risco de ‘recaída’? E, mesmo que tenha mudado, essa mudança é devido às nossas ações ou a um processo pessoal?”, elenca ele, entre outros pontos que impedem uma avaliação confiável.
Quando os programas de desradicalização se mostraram inócuos, vários governos mudaram o foco para “desengajamento”, segundo Claude Moniquet, ex-agente de inteligência francês que dirige o Centro Europeu de Inteligência Estratégica e Segurança. É o equivalente a dizer “não estamos interessados em suas ideias, mas em que você não cometa atos violentos”, afirma.
O problema do desengajamento, diz Moniquet, é que também aqui a dissimulação é uma manobra fácil. Outra complicador para medir o impacto das ações é que elas são personalizadas, argumenta Annelis Pauwels, que atua no Vlaams Vredesinstituut (Instituto para a Paz, centro independente de pesquisa do Parlamento Flamengo).
Os números de atentados jihadistas na União Europeia até mostram um refluxo após o pico de 2017, mas isso não pode ser atribuído aos programas governamentais, diz Grignard, que atuou na divisão antiterrorismo da Polícia Judiciária Federal belga.
A redução, segundo ele, ocorreu porque grupos como Al Qaeda e Estado Islâmico ficaram sem suas bases de retaguarda no Afeganistão e na Síria e no Iraque, respectivamente. “As causas que alimentam o islamismo radical ainda existem, mas os jihadistas não têm mais acesso aos recursos humanos e infraestrutura para grandes ações”, afirma o professor belga.
RISCO DE ATENTADOS SE DIVERSIFICOU
Pauwels reforça esse argumento: “De acordo com os serviços de segurança belgas, o risco de ataques jihadistas diversificou-se. Em vez de redes organizadas, hoje há jihadistas conectados por meio de redes soltas ou agindo sozinhos”.
A ameaça de terroristas não vinculados a nenhuma organização ou estrutura real cria dificuldades adicionais para os serviços de segurança, aponta a pesquisadora: “O perigo é mais difuso, e esses indivíduos são menos visíveis para a polícia”.
Relatórios recentes dos serviços de segurança do Estado mencionam várias vertentes do extremismo islâmico na Bélgica, principalmente o salafismo, mas também movimentos como a Irmandade Muçulmana e Milli Görüs, de origem turca.
“Os serviços de segurança alertam que os grupos salafistas são hoje muito ativos nas redes sociais. Estão particularmente presentes em torno do tema ‘aprender o islã’, o que significa que, se um jovem pesquisar esse tema na internet, serão grandes as chances de que acesse um site salafista”, diz a pesquisadora.
Moniquet afirma ainda que a luta contra o jihadismo na Europa é impossível sem o apoio das comunidades muçulmanas. Mais do que isso, opina Felice Dasseto, da Universidade Católica de Louvain, é necessário que surja “uma liderança muçulmana madura e corajosa, capaz de argumentar e contra-argumentar não apenas com as formas radicais de discurso mas também em relação ao pensamento muçulmano de forma geral, para propor outra forma de viver a fé”.

Fonte: FolhaPress/Ana Estela De Souza