Ao isolar sua internet do resto do mundo, a China conseguiu reservar mercado para que suas próprias empresas de tecnologia pudessem lucrar e crescer. Três décadas após a implantação dessa política, as companhias chinesas são as únicas no mundo que conseguem competir de igual para igual com os gigantes americanos e levam concorrentes ocidentais a imitar suas inovações, avalia Luca Belli.
“A China não quer que outros governos controlem sua população e seu desenvolvimento. E não é correto ver o controle digital somente como controle social, sem considerar a perspectiva de desenvolvimento econômico. Dos dois lados, deu muito certo [do ponto de vista dos objetivos chineses]”, avalia o pesquisador, professor da FGV Direito Rio e coordenador do CyberBrics, projeto que estuda a regulação digital nos países que formam o Brics, bloco formado por Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul.
À reportagem, por telefone, o ítalo-brasileiro também falou sobre proteção de dados e liberdade de expressão.
PERGUNTA – Como avalia o controle do governo chinês sobre a internet?
LUCA BELLI – Esse controle tem muito mais a ver com uma estratégia protecionista do que com controle social. O governo chinês adotou um controle sobre a internet desde o começo, pois não quer que outros governos controlem sua população e seu desenvolvimento. E não é correto ver esse controle somente como controle social, sem considerar a perspectiva de desenvolvimento econômico. Dos dois lados, deu muito certo, porque conseguem ter controle social e avanço tecnológico que outros países não conseguem. Os chineses são os únicos atualmente em nível de concorrência com os EUA, justamente porque eles se fecharam e criaram uma intranet chinesa. Não podemos falar de internet, porque na prática a internet lá é uma rede separada do resto do mundo.
Como explicar então o caso do Clubhouse, aplicativo de conversas em áudio que foi banido em poucos dias após ser usado pelos chineses para debater questões como a perseguição aos uigures?
LB – Este episódio ilustra bem a abordagem chinesa da tecnologia. No início, o Clubhouse foi acessível sem restrições, como ocorre com a maioria das tecnologias novas. As restrições só são implantadas quando algum risco é identificado pelo Partido Comunista. Logo na primeira semana, começaram vários debates sobre assuntos considerados críticos, como Hong Kong, Xinjiang e Taiwan. O problema surgiu quando o PC Chinês viu o surgimento de uma massa crítica de pessoas debatendo esses temas, algo que não poderia ser facilmente controlado. O Clubhouse foi bloqueado, mas continua acessível via VPN [redes que mascaram o destino final acessado pelo usuário]. Quem usa VPN, porém, é uma pequena minoria, que não é vista como um grande problema. A preocupação é com o surgimento de debates descontrolados em massa.
O que mais ajudou a China no avanço tecnológico?
LB – Foi um processo baseado em protecionismo e em enormes subsídios públicos. Se uma pesquisa gera uma boa tecnologia, o governo dá contratos bilionários para as startups se desenvolverem. É uma estratégia que a Europa está tentando imitar, com 20 anos de atraso. Todo o papo sobre soberania tecnológica europeia é basicamente copiar ideias chinesas e tentar torná-las mais adaptadas aos valores europeus.
É assim que as empresas ocidentais reagem ao avanço chinês?
LB – Hoje, a tecnologia ocidental busca copiar modelos chineses. As mudanças no WhatsApp, como a introdução de pagamentos, são uma cópia evidente do sistema do WeChat, o primeiro a criar um mega app que junta várias funções.
Empresas americanas também tentam entrar na China. O Google tentou no ano passado criar um buscador que atendia à censura chinesa, mas abandonou o projeto depois de uma enorme oposição dos funcionários. Todas gostariam de entrar no mercado chinês devido à escala: há mais de 1 bilhão de pessoas conectadas. O potencial de lucro é enorme. Os chineses não são contra o ingresso de outras empresas, mas se você entrar precisa respeitar as regras locais.
O controle da internet tem ficado mais forte ao longo dos anos?
LB – A evolução tecnológica chinesa permitiu maior controle e uma implementação mais eficiente das regras. Há dez anos não era assim. O progresso tecnológico na última década foi enorme. Em 2010, a China não estava em nível comparável aos EUA.
Nos anos 2000, havia conferências de blogueiros na China. O papel deles era bastante relevante. Depois, houve evolução em limitar a expressão individual, de organizar a distribuição do conteúdo online e de colocar regras. Qualquer país gostaria de ter um ambiente digital com direitos humanos maximizados, mas capaz de evitar os abusos que ocorrem quando a pessoa pode falar qualquer coisa. Só que a única maneira para limitar os abusos é a censura. Do ponto de vista dos direitos humanos, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. E a visão americana não defende a liberdade de expressão absoluta por direitos humanos. Porque se você pode compartilhar qualquer coisa na internet, gera mais dados a serem analisados, o que cria mais lucro. Precisamos ser mais críticos a ambos os modelos.
A liberdade de expressão total gera uma enorme dificuldade que ninguém quer resolver, pois o debate sobre a moderação de conteúdo, na verdade, é uma maneira refinada para falar de censura. É uma escolha difícil. A gente vai censurar para evitar problemas? Do lado chinês, há uma visão simples. Os chineses privilegiam a eficiência e o bem-estar da comunidade chinesa em vez de exigências individuais. Entra aí uma questão cultural. Nos países com maior influência ocidental, dá-se muito mais importância ao indivíduo, às liberdades individuais, do que à coletividade e à estabilidade social. Não estou falando que um sistema é mais inteligente que o outro, mas que vale a pena evitar simplificações. Hoje em dia há um debate internacional sobre soberania digital, que é relevante, porque os governos estão se dando conta de que foram colonizados digitalmente pelos americanos.
Como avalia a forma como a China lida com o anonimato e a proteção de dados?
LB – O anonimato é ilegal na China, e uma das razões é para ter maior controle social. No entanto, a falta de anonimato não é uma peculiaridade chinesa. No Brasil, a Constituição prevê a proibição de anonimato, e há uma lei de proteção de dados, mas basta ir a qualquer farmácia para descobrir que seus dados são coletados de maneira maciça, apesar da lei. Na regulação de dados, há dois lados: proteção de indivíduos e segurança jurídica para empresas e entidades que processam dados. A China está elaborando uma nova lei ampla sobre o tema, que está em consulta pública e deve ser adotada neste ano. Há algumas semanas, foi adotada uma lei de segurança de dados que cria critérios sobre quais dados precisam ser deixados em servidores chineses e quais os critérios para armazenar informações sensíveis.
O governo chinês tem muito interesse nisso porque as regras aumentam a segurança jurídica e evitam instabilidade política, o que é bom para os negócios. Na China, quando ocorre um vazamento de dados de uma empresa, há uma enorme repercussão entre os usuários. As empresas estão muito preocupadas, porque na intranet chinesa existe grande concorrência. Não tem somente um Google, um Facebook, uma Amazon. Para eles, ter uma exposição negativa na mídia significa perder usuários.
O controle da internet ajudou a criar esta competição?
LB – Claramente. O governo também adota medidas antitruste pesadas, para permitir mais concorrência e deixar claro que quem manda na China não são as empresas, o que em outros países não é tão claro.
A Rússia também tenta separar sua internet do resto do mundo. Pode conseguir?
LB – Não. Lá a internet não começou como algo fechado, mas como algo livre, embora tenha limitações. Tentar fechar depois é muito mais difícil quando se tem uma população acostumada à abertura.
Fonte: FolhaPress/Rafael Balago