As metrópoles Rio de Janeiro, Nova York e Joanesburgo se encontram no trabalho do coreógrafo Smaïl Kanouté por uma constante no Brasil que também atravessa os outros países onde estão essas cidades –o assassinato de jovens negros.
O francês, de 35 anos, começou seu espetáculo mais recente, que será apresentado no Festival Internacional de Teatro de Brasília a partir desta quinta-feira, na maior cidade americana, ainda em 2018. “Never Twenty One” retoma no nome os protestos do movimento Black Lives Matter em frente a uma das unidades da famosa loja de fast fashion Forever 21 -e é uma referência aos que nunca chegaram aos 21 anos de idade.
O curta-metragem que gravou em Nova York, para onde viajou com um projeto de apresentação da história de sua família, que é do Mali, foi o primeiro passo do espetáculo. Kanouté reuniu ali os movimentos do hip-hop que aprendeu em Paris, sua cidade natal, e depoimentos de familiares de jovens negros que foram assassinados.
Em cenas dentro de um teatro, no topo de um prédio e num corredor encurralado, o dançarino retoma o símbolo da arma frequentemente com as mãos em movimentos enérgicos, enquanto seu corpo está coberto de termos escritos com tinta branca e que saíram da fala dessas testemunhas –como “my son”, meu filho em inglês.
“Quando voltei a Paris [depois da viagem a Nova York], decidi criar um trabalho distópico para falar sobre essa questão no Brasil e na África do Sul”, conta Smaïl Kanouté.
O trecho que será apresentado no festival de teatro surgiu a partir de entrevistas com brasileiros que ele colheu na França, todos sobre a infância de cada um deles e a situação do país hoje.
Para pensar o assassinato de jovens negros no Brasil, o principal evento que o guiou na montagem foi a morte de 28 vítimas no Jacarezinho. Quando a conversa aconteceu, no entanto, o país já estava enlutado por mais uma morte de um jovem negro, dessa vez a de Kathlen Romeu, morta aos 24 anos e grávida.
“A versão brasileira é um tributo, uma homenagem aos jovens da favela e à cultura do Brasil”, afirma. E o Brasil não aparece só nas palavras em português que cobrem os corpos dos três dançarinos no palco, como a palavra “racista” estampada, também em branco, no peito do artista.
Kanouté veio ao Brasil pela primeira vez enquanto cursava design gráfico, e morou no Rio de Janeiro durante o intercâmbio pela Escola Nacional de Artes Decorativas na PUC-Rio. Foi passando um período na capital fluminense, especialmente na Rocinha, que ele aprendeu movimentos do passinho, que foram incorporados a sua coreografia, dos bailes funks, do samba e do forró.
Aqui no Brasil, ele ainda visitou Salvador e Paraty, aglutinando outros ritmos a sua pesquisa, que já envolvia danças contemporâneas, árabes e africanas, além do krump, também um estilo de dança de rua, como o hip-hop de sua cidade natal.
“A conexão que faço entre as danças brasileiras e as africanas é em torno da energia. Nessas regiões, temos crenças como o candomblé, no Brasil, e o vodu, em Benin, e através da escravidão as pessoas trouxeram consigo essa cultura e a incluíram em novas danças”, afirma Kanouté.
“Eu me senti próximo de jovens que moram em favelas porque cresci num bairro pobre, chamado Goutte d’Or, e a história do hip-hop na França e da dança afro-brasileira é a mesma porque quisemos criar o nosso lugar e a nossa existência nessa sociedade.”
Ao longo dos dez dias de festival, outros quatro vídeos de Kanouté serão apresentados –”Yasuke Kurosan, Le Samouraï Noir au Japon”, “Jidust – Poussière d’Eau”, “Univers” e “Never 21”, o primeiro curta feito em Nova York. Já “Never Twenty One”, que terá uma espécie de prévia exibida no festival só com o trecho que se relaciona com o Brasil, também está sendo apresentado presencialmente na França, com as coreografias completas, em torno das três cidades.
“Ano após o ano, o projeto ‘Never Twenty One’ se torna um símbolo porque há muitos eventos que têm essa violência. Eu não quero só dizer ‘olhe, em Paris é assim, em Nova York é assim’. Quero também fazer uma homenagem aos jovens, que podem criar suas músicas, dançar, todos os dias”, afirma o coreógrafo.
“Essa cultura é poderosa e a gente vê muitos movimentos novos de dança e música nela. Quero mostrar para as pessoas que a vida é dura, mas que somos jovens, queremos construir o nosso mundo e dizer para todos ‘nós estamos aqui’ e estaremos até o fim do mundo.”
Fonte: FolhaPress/Carolina Moraes