Cultura
Quarta-feira, 17 de julho de 2024

Em ‘Anna’, diretor Heitor Dhalia reflete sobre relações abusivas

CÁSSIO STARLING CARLOS

Falar de poder e denunciar abusos passou a ser, mais que uma mania, uma necessidade contemporânea. “Anna”, novo longa de Heitor Dhalia, sonda essa dimensão inerente aos relacionamentos, construindo uma ficção que é também uma reflexão sobre a criação.
O teatro é o espaço que o filme elege, ciente de suas possibilidades. Um diretor seleciona o elenco para uma montagem de “Hamlet”. O grupo de atores jovens e inexperientes se submete ao processo criativo do encenador, embora este demonstre mais de uma vez que sua reputação se confunde com tortura emocional e manipulação.
Durante os ensaios, a jovem Anna, candidata ao papel de Ofélia na tragédia shakespeariana, acata os comandos do diretor, ilustrando a confusão entre autoria e autoritarismo, desejo e submissão.
Depois de sete longas mais ambiciosos do que bem-sucedidos, o diretor Heitor Dhalia alcança, enfim, um equilíbrio entre estilização e mensagem. Desta vez, o filme deixa de ser um atraente catálogo de imagens, pois a intensidade do drama transfere para outro polo a inclinação de Dhalia para o esteticismo.
O enclausuramento é decisivo para este ganho. Em uma sala de teatro vazia, nossa atenção fica concentrada nas relações físicas e psicológicas que Arthur, renomado encenador argentino, impõe aos jovens da companhia.
Em vez de filmar o palco, como de costume, do ponto de vista da plateia, Dhalia inverte a perspectiva, situando-nos dentro, em meio ao grupo. A arquitetura de Lina Bo Bardi para o teatro do Sesc Pompeia converte-se em cenografia, proporcionando um contraste geométrico e cromático à desordem emocional que progride ao longo dos ensaios.
A construção de um espetáculo é também símbolo da criação de um filme, no qual o status do diretor pode levá-lo a se enxergar como um semideus ou um ditador.
Outro aspecto do enclausuramento aparece na opção pelos closes. Desde a primeira cena, na qual se impõe a face crispada de Boy Olmi, ator-diretor argentino que interpreta Arthur, o filme obedece a esta lógica visual e narrativa que sugere restrição e controle.
A “verdade” que Arthur exige e quer arrancar dos atores revela-se no cinema por meio dessa proximidade da câmera, que parece apalpar os corpos, tatear as faces e ir além das palavras. O roteiro de Nara Chaib Mendes, em parceria com Dhalia, sublinha isso ao dar espaço para o não dito, capturado em olhares e na tensão física.
Para alcançar isso, é decisiva a contribuição de Boy Olmi e, sobretudo, de Bela Leindecker, intérprete de Anna, que interagem como feras, reagem com silêncios que soam como ameaças.
Desse modo, o filme consegue abordar o tema do abuso e dos relacionamentos tóxicos sem ficar restrito à agenda contemporânea e sem depender exclusivamente do discurso, das opiniões que o precedem e das quais ele seria uma ilustração.
Muito antes das denúncias que o #MeToo trouxe à tona, as relações abusivas no mundo do cinema ficavam escondidas sob os vínculos entre produtores e diretores, de um lado e, de outro, atrizes que eles moldaram conforme suas obsessões.
Sternberg e Marlene Dietrich, depois Hitchcock e todas as loiras, Rossellini e Ingrid Bergman, Godard e Anna Karina, Bergman e Liv Ullmann, Bertolucci e Maria Schneider, Lars von Trier e Björk são os casos mais conhecidos de excessos no processo criativo, de objetificação da atriz por artistas que ignoraram limites.
“Anna” adota o teatro para refletir sobre algo que, se não é rotineiro, é tido como inerente ao processo de criação cinematográfica. Trazer essa questão à tona sem disfarçar suas ambiguidades torna o filme necessário.

Fonte: FolhaPress