Cultura
Quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Herança indígena das obras de Conceição dos Bugres é retomada em nova mostra

CAROLINA MORAES

“Natureza é coisa fina”, disse Conceição Freitas da Silva, numa entrevista em 1979. “É a mesma coisa que a gente.”
A artista, que viria a ser conhecida como Conceição dos Bugres, considerava que a natureza da madeira, material com que trabalhava, era sábia -poderia até ter partido do próprio tronco a posição que suas esculturas tomavam, sugeriu à Aline Figueiredo nessa mesma conversa.
Mas mesmo que demonstrasse essa espécie de reverência, e respeito, pelo material que talhava, tinha muita intenção da própria escultora em suas peças. São poucos cortes precisos e geométricos que construíram seus “bugres”, agora apresentados na exposição “Conceição dos Bugres: Tudo É da Natureza do Mundo”, no Masp, até o dia 30 de janeiro de 2022.
As figuras criadas por Conceição se alternam de tamanho, entre esculturinhas que cabem na palma da mão e troncos pesados, com cabeças sobrepostas -mas todos preservam a repetição de elementos-chave.
As incisões secas que criam braços grudados ao corpo ou como pequenas asas, cabelos lisos que simulam os que são associados a pessoas indígenas, sempre cobertos por algum tipo de cera, são, para a curadora Amanda Carneiro, à frente da exposição com Fernando Oliva, como um exercício fino de síntese.
“É uma repetição que reforça uma espécie de dom de estilo da Conceição, porque eles são muito diferentes ao mesmo tempo que repete muitos elementos. Os olhos sempre são assim, com uma incisão, depois pintados de preto. Mas eles têm densidades muito diferentes, é diferente a maneira com que eles nos observam”, diz ela.
A particularidade que cada pequena figura demonstra está na própria relação que a artista criava com eles. Primeiro porque ela era consciente da singularidade estética que os bugres guardavam. Na mesma entrevista de 1979, ela afirma que eles “são parecidos, mas são bem diferentes”.
Segundo porque documentos dão conta de que ela nomeava cada um deles por um nome próprio, e dizia que gostava de fazê-los para serem sua companhia.
É um afeto que contrasta com a nomeação coletiva de “bugres”, ainda que ela o tenha adotado posteriormente a seu nome artístico. O termo, na verdade, tem um cunho pejorativo –ele se refere ao tido indígena “indomável”, “não domesticável”. Ou seja, um sujeito rude.
A exposição, que abre o biênio de Histórias Brasileiras da instituição, e que é seguida por individuais de Maria Martins e Erika Verzutti, reúne 113 obras de Conceição produzidas entre os anos 1960 e 1984, quando ela morre, vindos em sua maioria de coleções particulares.
É uma apresentação que se relaciona com as outras mostras que o Masp fez com o intuito de reposicionar artistas menos presentes no circuito oficial de arte, como Maria Auxiliadora e Djanira.
Mas não é como se ela não tivesse tido algum reconhecimento em vida. Obras de Conceição estavam na exposição “Arte/Brasil/Hoje: 50 anos depois”, no Rio de Janeiro, em 1972, e na terceira Bienal Nacional, em São Paulo, em 1974. Ela é também uma escultora símbolo no Mato Grosso do Sul, explica Amanda Carneiro, sobre o estado para onde a artista foi depois de sair de Povinho de Santiago, no Rio Grande do Sul, onde nasceu.
“Isso aponta para como o sudeste, de maneira geral, olha muito pouco para a produção do Brasil”, diz.
Nada desse reconhecimento enquanto viva, no entanto, mudou sua trajetória financeiramente. Ainda sim, ela morreu pobre em Campo Grande.
Agora, no Masp, essas peças são apresentadas um tanto tímidas num corredor do museu, mas organizadas de maneira que salte aos olhos do público as diferentes personalidades que Conceição criou. Estão lá, por exemplo, os seus “negrinhos”, que simulam o cabelo crespo de pessoas negras, já numa madeira quase preta.
A curadora Naine Terena também discute num dos textos que compõem o catálogo da exposição a possível origem kaingang de Conceição Freitas da Silva –uma leitura que não é unânime, e que é cercada de contradições, segundo Carneiro.
É fato que ela se referia a figuras indígenas quando descrevia suas esculturas, e que a própria denominação externa de bugres, ainda que pejorativa, aponta para esse lugar.
“Trouxemos essa diversidade de opinião, achamos que é bastante revelador de um processo de apagamento e invisibilidade indígena que existe no Brasil”, diz a curadora. “Muitas identidades negras e indígenas, quando colocadas na categoria pardo, perdem o senso de lastro e origem, e isso é algo que aconteceu com Conceição.”
Mas é um debate que carrega, na sua outra ponta, a necessidade de autoafirmação -como se ela não pudesse existir sem assumir um lado ou outro, “que era um pouco o que ela fazia”, afirma a curadora.
Para ela, a exposição inaugura o novo biênio da instituição considerando questões mais complexas -de uma artista que morre sem reconhecimento financeiro e cuja identidade é cercada de contradições. “É o que a Conceição aponta para gente.”

Fonte: FolhaPress