Internacional
Quinta-feira, 28 de março de 2024

Devemos aproveitar os espaços que a ditadura dá, diz opositor que integra órgão eleitoral na Venezuela

SYLVIA COLOMBO –

Em 2017, Roberto Picón passou seis meses preso no Helicoide, a prisão política mais temida de Caracas, esperando julgamento por uma suposta “traição à pátria”. Ele também foi assessor da antiga coalizão opositora MUD (Mesa da Unidade Democrática) entre 2008 e 2018.
Hoje, três anos depois de ser detido, Picón integra o novo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela -órgão responsável por organizar as eleições no país e que, nos últimos anos, caiu em descrédito por estar sob controle da ditadura de Nicolás Maduro.
Essa transição de ex-preso político para integrante do CNE aconteceu depois que o regime deu sinais nas últimas semanas de que gostaria de dialogar com a oposição em busca de um pacto que pudesse aliviar as sanções internacionais impostas contra a Venezuela.
Entre outras medidas, o governo liberou para prisão domiciliar um grupo de executivos que eram mantidos como presos políticos e decidiu que o novo órgão eleitoral, referendado pela Assembleia Nacional controlada pelo chavismo, teria em sua formação dois representantes da oposição -um deles, Picón.
Os gestos inicialmente foram vistos com desconfiança pela oposição, mas depois líderes como Juan Guaidó e Leopoldo López deram sinais de que poderiam aceitar a aproximação como forma de combater a crise econômica e social que assola o país.
Nesse cenário, Picón defende que a oposição precisa aproveitar a brecha para ocupar os espaços oferecidos pelo regime. Em entrevista de Caracas, ele diz que sua prioridade no cargo será lutar para que políticos de oposição atualmente proibidos de disputar eleições possam participar dos próximos pleitos.

PERGUNTA – O novo CNE foi escolhido por uma Assembleia Nacional eleita num pleito com irregularidades. Por que o senhor aceitou compor um órgão que, a princípio, não é legítimo?
ROBERTO PICÓN – Esta é uma questão parecida com aquela expressão sobre o que vem antes, o ovo ou a galinha. Sim, a Assembleia que nos nomeou não é reconhecida por boa parte da sociedade e da opinião pública internacional. Mas eu penso que, assim como nessa expressão, não adianta ficar dando voltas com relação à resposta. A verdade é que temos hoje um CNE que dá oportunidade a dois membros da sociedade civil, da oposição, a trabalharmos junto com o chavismo.
Isso gerou um fato político que pode frear a inércia da situação em que estamos. A escolha dos novos integrantes do CNE ajudou a fazer com que alguns líderes da oposição, como Leopoldo López ou Juan Guaidó, agora admitam conversar com Maduro e vice-versa. Algo que vinha travado até então. Portanto, vejo aí um benefício para a Venezuela.

O que se pode esperar do novo CNE para a próxima eleição de governadores, prefeitos e conselhos legislativos, que será em 21 de novembro?
RP – Precisamos que os venezuelanos voltem a acreditar no CNE, tanto os eleitores, para que participem do pleito, quanto os políticos. Para isso, começamos a trabalhar em várias frentes.
A primeira é fazer um inventário de todas as inabilitações de políticos opositores ao governo. Listar quais são e quem retirou seus direitos de se candidatarem. De políticos em particular e de partidos políticos também. Em alguns casos foi a Procuradoria, em outros a Justiça, em outros a Controladoria. Tendo isso identificado, faremos as gestões políticas para que essas inabilitações sejam revertidas.
A segunda é uma revisão do sistema, que continuará sendo automatizado, com voto eletrônico, usando o manual apenas em casos de insuficiência no primeiro caso. De um modo geral, até aqui, a avaliação é de que temos um sistema que, tecnicamente, funciona bem.
Depois, virá uma campanha para que a população entenda que estamos num novo momento, de tentar recuperar a institucionalidade do país, e que, portanto, a participação é importante. E, por fim, conseguir que observadores internacionais qualificados sejam parte de todo o processo, para que recuperemos a imagem do sistema eleitoral venezuelano ante o mundo.

O senhor fez parte da coalizão opositora MUD e chegou a ser preso por se opor ao regime. O que o faz pensar que, agora, pode confiar nas decisões que Maduro está tomando?
RP – O conflito político venezuelano, com os anos, converteu-se em um conflito existencial cada vez mais intenso. Eu fui vítima dessa confrontação e passei seis meses preso no Helicoide e depois mais seis meses em minha casa. Até hoje, não houve nenhuma audiência, nem a preliminar, ou seja, aquela em que a Procuradoria teria de apresentar as acusações. É um assunto pendente, mas que não me preocupa agora, porque como reitor do CNE tenho foro privilegiado, que só poderia ser retirado por uma decisão da Assembleia Nacional.
Digo que se trata de um conflito existencial porque ele já pressupõe que há perseguidos e inabilitados e que, portanto, não há chances de mudar nada. Por isso, creio que devemos aproveitar todos os espaços que o poder dá para buscar a possibilidade de competir e de reinstitucionalizar o país.

Mas por que acreditar que essa possibilidade existe agora, e antes não existia?
RP – Porque a situação está mudando. O isolamento econômico e político da Venezuela faz com que a força do regime se debilite. Não há receitas nem exportações ou importações, e pagamos um custo alto pelas sanções econômicas impostas por países da comunidade internacional. A governabilidade do país estará cada vez mais em crise se essa tendência se mantiver. Por isso, o governo tomou decisões como esta, de convocar a sociedade civil para participar do CNE. Isso nos dá uma chance, e temos de aproveitar.

Neste contexto de realizar gestos para melhorar a imagem da Venezuela no exterior, como o senhor avalia, por exemplo, o confisco do prédio do El Nacional, último jornal grande independente do país?
RP – É um mau sinal, seguramente. Mas demonstra que o regime tem divisões internas. Há os que querem melhorar a imagem do regime e há os que creem que esse tipo de arbitrariedade pode continuar a ser cometida.
Ainda assim, o Poder Judicial, em teoria, é autônomo, e essa não foi uma decisão do Executivo. É lamentável que tenha ocorrido, mas não podemos interpretar como uma ordem direta de Maduro. Penso que há divisão no regime e há correntes mais propensas a negociações do que outras, e estão disputando internamente. O que ocorreu no caso do Nacional foi a demonstração de uma parte das forças do governo. Não de todo o governo.

Fonte: FolhaPress