TETÉ RIBEIRO
(FOLHAPRESS) – Só duas pessoas sabem o que aconteceu na casa de campo onde Mia Farrow vivia com seus muitos filhos entre seu ex-namorado, Woody Allen, e uma das filhas adotivas do casal, Dylan Farrow, então com sete anos, no dia 4 de agosto de 1992.
Mas os documentaristas americanos Kirky Dick e Amy Ziering, autores da série em quatro episódios “Allen v. Farrow”, da HBO, cujo terceiro capítulo foi ao ar neste domingo, não têm nenhuma dúvida. Segundo eles, o cineasta é culpado de ter molestado sexualmente a menina. E os dois trabalharam duro para deixar claro esse ponto de vista.
Eles ainda afirmam torcer para que o lançamento do programa contribua para a eclosão de um movimento mundial estilo MeToo contra o incesto. Não há dúvida de que esse crime hediondo, muito mais comum do que a maioria das pessoas gostaria de acreditar, merece ser foco de uma campanha barulhenta, para que, com sorte, deixe de ser cometido com tanta frequência. De preferência, que nunca mais aconteça.
O problema é que eles elegeram um caso cheio de contradições para investigar e só ouviram uma versão dos fatos. Além de terem omitido outros tantos que poderiam formar uma imagem mais completa para o espectador.
Tudo na relação de Woody Allen e Mia Farrow é estranho. O diretor e a atriz formaram um dos casais mais badalados de Hollywood durante 12 anos e fizeram 13 filmes juntos de 1982 a 1992. Entre os longas, há “Zelig”, “A Rosa Púrpura do Cairo” e “Crimes e Pecados”. Nunca moraram no mesmo apartamento.
Tiveram um filho biológico, nascido em 1987, que mudou de nome quatro vezes –nasceu Satchel, então Farrow trocou para Seamus, depois para Harmon e finalmente ele decidiu por Ronan– e foi batizado sem o sobrenome do pai, por iniciativa da mãe, sem que Allen fosse consultado.
Woody Allen adotou oficialmente dois filhos de Farrow por quem se afeiçoou, o coreano Moses, hoje com 43 anos, e a americana Dylan, hoje com 35 anos. Mia Farrow teve 14 filhos no total, sendo quatro biológicos e dez adotados.
O romance acabou em janeiro de 1992 de maneira escandalosa, quando Farrow descobriu, na casa de Allen, fotos nuas de uma de suas filhas adotivas, a coreana Soon-Yi Previn –brevemente chamada de Gigi por sua mãe-, então com 21 anos, adotada quando Farrow era casada com o músico André Previn.
Na época, Woody Allen disse que o que tinha acontecido entre ele e Soon-Yi teria sido um caso sem importância. Mia Farrow, furiosa –e com razão–, rompeu o namoro com o cineasta, mas não abandonou as filmagens de “Maridos e Esposas”, a última colaboração do casal.
Woody Allen e Soon-Yi se casaram em 1997 e estão juntos até hoje. Têm duas filhas adotivas.
Meses depois do fim do relacionamento de Farrow e Woody, no dia 4 de agosto, Dylan teria contado a sua mãe que seu pai abusara sexualmente dela, tendo tocado em sua vagina. No documentário, aparecem várias cenas inéditas de Dylan relatando à sua mãe, em gravações caseiras, o que tinha acontecido no sótão da casa em que moraram. Woody Allen ainda frequentava para visitar as crianças.
As imagens são difíceis de ver. Mas a própria existência delas parece problemática. Ao supostamente ouvir o relato da filha de que acabara de ser molestada sexualmente pelo pai, a atriz pegou sua câmera VHS e passou a filmar a menina obsessiva pelos dias seguintes, voltando sempre ao assunto. Só depois ocorreu a ela procurar ajuda psicológica –e não ocorreu chamar a polícia, o que o médico consultado fez sem que ela soubesse.
Há mais coisas esquisitas nessa história. O documentário diz fazer uma grande investigação para descobrir a verdade. Entrevista bastante Mia Farrow, Dylan, Ronan, outros filhos dela, advogados, delegados, especialistas em abuso sexual infantil, familiares de Farrow e amigas próximas. Mas, além de não ter entrevista com o acusado, nem com sua mulher, não tem nenhum depoimento, nenhuma palavra, de alguém que tenha dúvidas em relação à culpa de Woody Allen.
A dúvida move o jornalismo, mas não o documentário, dirigido por Amy Ziering e Kirky Dick, autores de outros filmes que tratam de assédio e estupro em universidades, nas Forças Armadas e na Igreja Católica.
Os diretores estão atrás de uma grande revelação, algo que engrandeça o trabalho deles. E concluir que não dá para ter certeza se houve mesmo abuso sexual não cabe no projeto. Ainda mais depois de o público ter sido apresentado a documentários tão mais pungentes sobre o tema, como “Leaving Neverland”, sobre Michael Jackson, lançado em 2019.
E comparar predadores como o bilionário americano Jeffrey Epstein e o ex-produtor de cinema Harvey Weinstein com Woody Allen, como tem acontecido na mídia americana, é uma falta total de critérios.
Enquanto os dois primeiros tiveram comportamentos repetitivos, durante anos, com inúmeras vítimas, Woody Allen, se for mesmo culpado, se descobriu pedófilo e incestuoso aos 57 anos, abusou de sua própria filha uma vez e nunca mais repetiu o gesto.
Essa e muitas outras questões relevantes ficaram de fora, pelo menos dos três primeiros episódios, os que já foram ao ar. Pode ser que o último capítulo surpreenda contando uma história mais equilibrada.
Até agora, não há declarações de Moses, o filho adotado primeiro por Mia Farrow, depois por Woody Allen, que já disse publicamente que sua mãe abusava fisicamente dos filhos, fazia lavagem cerebral até eles dizerem o que ela queria e que a acusação de Dylan é ridícula.
Também não há menção ao fato de Mia Farrow ter defendido o caráter de seu amigo e ex-diretor Roman Polanski, quando ele foi acusado de abuso sexual contra uma garota de 13 anos, em 1977.
Nada sobre a história de seu irmão, John Charles Farrow, condenado em 2013 a 25 anos de prisão por molestar sexualmente meninos menores de idade. De fora estão também os suicídios de dois filhos adotivos de Farrow, Tam e Thaddeus, nem da morte de um terceiro, Lark, que acabou na pobreza, sofrendo de Aids.
“Allen v. Farrow” só se interessa por um lado da história, o que comprova o veredito que convém aos cineastas. E o que convém aos cineastas pode não ser a verdade.
Cultura
Sábado, 6 de julho de 2024
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