Economia
Domingo, 19 de maio de 2024

O recomeço da Avon: dentro da Natura &Co, marca quer mostrar que maquiagem é para todos

“Pois é, muito tabu por causa de umas cores na cara”, afirma Daniel Silveira, presidente da Avon Brasil, desde que a Natura &Co assumiu o negócio, há um ano. Esse é o comentário enquanto tentamos exercitar qual será a reação das pessoas à sua foto: homem branco, heterossexual, CEO e com o rosto maquiado. Sua declaração é uma simplificação de quem está à frente de uma companhia habituada a ter o feminino como inspiração e a diversidade como causa. Pura naturalidade.

É sexta-feira, dia 29, à noite, no prédio do grupo próximo à Rodovia Anhanguera, chamado de Nasp. Exceto pela pintura na tal da linha d’água dos olhos, essa divisa antes dos cílios inferiores, Silveira está totalmente à vontade com a produção do maquiador André Sartori. Bem melhor, aliás, do que nas selfies que ele mostrou em seu celular pouco antes.

Maquiagem é rotina para o executivo, que tem o hábito de testar os produtos da empresa em casa — e até alguns da concorrência, confessa. Ele experimenta as novidades tão logo são enviadas para sua residência. Batom, sombra, cremes, shampoo, tudo. A única coisa que ainda não usou foram os esmaltes. Algumas vezes, seus dois meninos, de 11 e 7 anos, também brincam com os lançamentos e, em outras, pede a opinião da esposa.

Na vida pós-covid, Silveira vai bem além dos testes. Conta que para algumas transmissões ao vivo ou fotos, “numa boa”, adota um primer, uma espécie de camada preparativa para a pele, ou uma base. “Tudo na base é sobre acertar o tom e a quantidade”, conversa, com propriedade.

“Maquiagem é para todos, sim”, diz, quando questionado se homem também pode ou deve usar. “É uma questão de hábito. Não tem nada demais.”

Desde que a Natura &Co comprou a Avon, movimento que a colocou como a quarta maior empresa de beleza do mundo, há uma grande ansiedade sobre como o grupo brasileiro vai conseguir modernizar a imagem da centenária marca americana e como fará a integração entre os negócios — que incluem ainda as marcas The Body Shop e Aesop.

Está nas mãos de Daniel Silveira o sucesso do sonho realizado dos fundadores da Natura. Após anos de idealizações e conversas conseguiram comprar a gigante Avon, que há décadas sofria com as finanças apertadas e uma percepção de envelhecimento do nome. Agora, a marca americana responde por mais da metade da Natura &Co. Dos R$ 24,9 bilhões de receita líquida consolidada do grupo nos primeiros nove meses de 2020, R$ 12,9 bilhões vieram dela.

“A tarefa é muito maior do que rejuvenescer a marca. A companhia precisa passar por uma modernização completa, em especial da relação com suas revendedoras e de seus processos”, afirma, em sua primeira entrevista sobre a integração, concedida ao EXAME IN. Sob sua batuta, um exército de 1,3 milhão de consultoras ativas (aquelas que fazem encomendas em todas as campanhas de produtos). É um total superior a toda a marca Natura, cerca de 10% a mais. No mundo, são 5 milhões de representantes Avon.

Tem muita riqueza para ser gerada com a transação, mas um potencial relevante também de frustração, como toda fusão de dois grandes nomes e culturas. Desde que anunciou a operação, a Natura duplicou de valor. No fim de 2020, chegou a R$ 73 bilhões na B3, recorde de seu valor de mercado. Agora, com alguma realização sobre as ações, está avaliada em torno de R$ 68 bilhões.

A Avon vai ser cada vez mais Avon

Nessa primeira conversa, Silveira mostra qual será o caminho dessa combinação. A estratégia é fortalecer a Avon e sua identidade e não transformá-la em outra Natura. “Essa marca nasceu em 1886. São 135 anos de história. Em um momento em que a mulher ainda não podia nem votar, [David] McConnell criou uma indústria de empoderamento feminino e da democratização da beleza”, conta.

A companhia foi criada por David McConnell, em Nova York, e entre as ideias do fundador estava oferecer uma possibilidade para que as mulheres pudessem ter uma renda própria, o que ajudaria a melhorar sua independência. Além disso, tinha fé de que uma mulher preferia falar sobre cosmésticos com outra mulher, e não com um homem.

“Não estamos aqui para mudar a Avon. Estamos revelando a essência Avon. Nada mais atual nesse momento de mundo do que uma marca com propósitos.” A mulher é uma causa da companhia e esse posicionamento vai ser reforçado e atualizado. “Quando falamos em democratizar a beleza, estamos falando da beleza natural, das ruas. A beleza empodera, mas também pode aprisionar se for baseada em estereótipos.”

Silveira é prata da casa. Está no grupo há mais de 20 anos, onde começou como trainee na área de logística. Com tanto tempo de empresa, já esteve à frente de diversos projetos, como o turn-around da própria Natura e implementação de um teste piloto da marca brasileira na Malásia. Embora líder da operação brasileira da Avon, é daqui que sairá a tônica global da marca. O Brasil é atualmente — e há vários anos — o maior mercado da companhia.

Ufa, cresceu!

A tranquilidade para falar de identidade tem o suporte de quem está conseguindo o que quer em resultados. No terceiro trimestre do ano passado, a Avon Brasil teve o primeiro crescimento em dez anos.

Entre julho e setembro, a receita líquida totalizou R$ 1,2 bilhão de reais, ante R$ 960 milhões em igual período do ano passado. Numericamente, o total equivale a uma expansão de 25% na comparação anual. Entretanto, há impacto da transferência de receita do segundo para o terceiro trimestre em razão de um ataque cibernético sofrido pela empresa no primeiro semestre do ano passado.  Excluído esse efeito, a expansão foi de 6,1%.

Sem poder revelar detalhes, Silveira conta duas outras conquistas que o deixam ainda mais satisfeito. A frequência de pedidos das revendedoras Avon não tinha o crescimento alcançado no terceiro trimestre (o número é segredo) desde 2015.

Além disso, a empresa alcançou a melhor nota de satisfação das consultoras desde que passou a ser medida, entre 2015 e 2016. A mensuração era realizada por trimestre e, ao longo do ano, a companhia vai ampliar essa frequência. Mas a nota, segundo o executivo, é uma demonstração de que o caminho está correto. A pesquisa busca avaliar a satisfação com a posição de revendedora e também os níveis de serviço.Desempenho da Receita líquida da Avon Brasil, América Latina hispânica e demais países

Desempenho da Receita líquida da Avon Brasil, América Latina hispânica e demais países (Arte/Exame)

Digital e mais enxuta

Modernizar a relação comercial com as revendedoras e os processos da Avon são prioridades para 2021 tanto quanto o rejuvenescimento da marca. Enquanto esse processo está bastante avançado na Natura, ainda tem uma larga avenida a ser percorrida no negócio absorvido há um ano. Em breve, o executivo deve lançar o aplicativo para consumidores. A Natura tem o seu próprio desde 2015, mas só agora esse canal será oferecido também pela Avon.

Outra iniciativa já mapeada e iniciada por Silveira é um enxugamento do portfólio, para que possa concentrar nos produtos com melhor desempenho. Com as linhas de moda casa e de beleza, há mais de 4.000 SKUs que rodam na empresa hoje. “A área de inovação da Avon me surpreendeu muito. Mas vamos fazer uma curadoria do portfólio, pois desse tamanho, haveria dificuldade de sustentação das inovações.” Ele destaca ainda o desafio para a revendedora, com uma lista tão extensa de produtos.

Logo após assumir a Avon, a Natura &Co ampliou as estimativas de sinergias anuais recorrentes com o negócio duas vezes. No grupo consolidado, são esperadas entre US$ 300 milhões e US$ 400 milhões para serem plenamente incorporadas até o fim de 2023 (em um câmbio de R$ 5 para cada US$ 1), com um custo de implementação da ordem de US$ 190 milhões.

Parte desse total é por economia de custos e aumento de eficiência de processos, mas parte importante é de crescimento de receita, que virá da união da força do grupo com todas as marcas. Na integração fabril, de acordo com o executivo, o trabalho está cerca de seis meses adiantado. A convergência foi acelerada pela pandemia, quando o grupo fez uma gestão de produção dedicada às necessidades trazidas pela disseminação da covid-19 pelo mundo.

“Vamos começar logo mais a produzir sabonetes em barra da Avon na fábrica em Benevides [Pará] da Natura. Já tem perfumes da Natura sendo produzidos na fábrica de Interlagos [São Paulo], da Avon”, conta, comentando que também na Argentina e outros países da América Latina já existe essa integração de parque.Daniel Silveira: nesse momento, prioridade é modernizar modelo comercial com revendedora

Daniel Silveira: nesse momento, prioridade é modernizar modelo comercial com revendedora (Germano Lüders/Exame)

Marca

A decisão de Silveira de aparecer maquiado na foto para a entrevista ao EXAME IN veio após a primeira polêmica no programa Big Brother Brasil (BBB), envolvendo uma ação da companhia.

Em um dos maiores investimentos em marketing realizados pela marca em anos, a Avon é um dos patrocinadores “big” do programa — são três cotistas de destaque, de um total de oito patrocinadores. Com mesmo peso da Avon, estão Americanas e PicPay.  As cotas podem custar até R$ 78 milhões, de acordo com matéria do portal UOL. Mas a Avon não comenta os valores.

Na primeira ação promocional no reality show, a Avon colocou maquiagens  dentro da casa. Os homens participantes pediram para serem produzidos pelas mulheres. Mas, logo após a maquiagem, passaram a se comportar com trejeitos e de uma forma estereotipada, o que gerou discussão e debate com uma participante mulher.

O executivo conta que não esperava o debate tão rapidamente, mas que o objetivo de participar do programa era justamente esse. “O programa mudou bastante desde a edição passada e tem essa proposta de gerar discussões importantes. Isso foi determinante para definir nossa participação. Buscávamos mesmo algo vivo, que trouxesse diálogo.”

Há outras iniciativas de peso em marketing no forno, mas o executivo não revela quais. Antes do BBB, a Avon, sob a tutela de Silveira e da Natura &Co, fez duas grandes campanhas que misturavam performance de produto e causa da marca, já com o propósito de se reapresentar ao público e enfatizar seus valores de fundação.

A primeira foi sobre a base de longa duração “Power Stay”, com as atletas Marta Vieira da Silva, do futebol feminino, Pâmela Rosa, campeã do Skate, e Raíssa Machado, paratleta de lançamento de dardo.

Já a segunda campanha, “Essa é minha cor”, exigiu antes ajustes e programas internos. A empresa tinha há mais de um ano uma pesquisa sendo realizada a respeito dos tons de pele da mulher brasileira, com o propósito de desenvolver produtos para pele negra, principalmente base e pó.

Silveira, porém, só colocou no ar o programa e os produtos na praça, depois de estruturar ações internas de diversidade racial, com metas claras. “Nosso sonho, é que um dia a Avon seja tão diversa em cores na mesma proporção da população brasileira. Em gênero já estamos arrumados: 53% são mulheres, dos colaboradores. Mas na questão racial ainda temos muito a fazer.”

Fonte: Exame