CAROLINA MORAES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morto aos 50 anos de idade, em 1973, Ivan Serpa foi cobrado por críticos de sua época por não ter uma coerência artística.
Isso porque o artista plástico, mais conhecido por seus trabalhos geométricos, transitou por produções que dialogam com a pop art, mostram imagens de homens desfigurados e lânguidos e até lembram texturas da corrosão que micro-organismos provocam em contato com papéis.
A retrospectiva dele que chega esta semana ao Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB, em São Paulo, quer mostrar que essa multiplicidade, no entanto, não é consequência de falta de unidade artística.
Além de as fases distintas dialogarem entre si, as várias técnicas utilizadas pelo pintor apontam para uma obsessão contínua pela forma, que o acompanhou pelos seus 30 anos de carreira.
“Ivan Serpa: A Expressão do Concreto” apresenta mais de 200 trabalhos do artista carioca, que viveu a maior parte da sua vida no Méier, zona norte do Rio de Janeiro, com sua esposa, Lygia, e três filhos.
Foi na cidade que ele encabeçou o Grupo Ruptura em 1954, um dos responsáveis por formar a arte concreta brasileira e que tinha outros nomes de peso, como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica.
Mas ele começou seus estudos de arte ainda em 1940, no ateliê do austríaco Axl Leskoschek, que também formou artistas como Fayga Ostrower e Edith Behring.
Foi em São Paulo, porém, que o trabalho de Serpa alcançou projeção –ele ganhou, em 1951, o Prêmio Jovem Artista na Bienal Internacional de Artes Plásticas, com “Formas”.
É neste período concreto, pelo qual o artista é mais reconhecido, que a exposição no CCBB começa, com pinturas em que os formatos geométricos são predominantes.
Hélio Márcio Dias Ferreira, à frente da mostra ao lado de Marcus de Lontra Costa, caracteriza essas obras como dotadas de uma “geometria ritmada” e as compara a uma composição musical –como se a construção das peças fosse menos rígida do que as figuras simétricas sugerem.
Um ano antes do prêmio da Bienal, Serpa foi contratado como restaurador de obras raras em papel na Biblioteca Nacional. A função que desempenhou por 14 anos, afirma Dias Ferreira, influencia a série seguinte da retrospectiva, intitulada “Anóbios”.
A ação dos bichos de mesmo nome ao percorrer e corroer o papel cria pequenos labirintos, que se assemelham à textura criada nas telas de Serpa.
Uma segunda influência de seu trabalho como restaurador surge em composições que misturam geometria e o aspecto rugoso de “Anóbios”.
Serpa criou uma técnica em uma máquina que fortalecia papéis fragilizados. Com ela, o artista colava os recortes sob pressão e calor em uma base de celulose –foi assim que a obra de 1954 que ilustra esta reportagem foi feita.
Mas talvez a herança mais latente de seu trabalho fora do universo das artes plásticas seja a liberdade de transitar entre técnicas e linguagens diferentes. É o que defendem Ferreira e Lontra Costa.
Para os curadores, o trabalho como professor de francês e, depois, de artes visuais, fizeram de Serpa um artista que respeitava e compreendia estilos distintos de produção.
“Ele era um homem que vivia o cotidiano do Rio de Janeiro, mas com uma formação francesa. Tinha uma linguagem [visual] internacional”, avalia Lontra Costa.
Afinal, lembram eles, Serpa foi um artista que transitava pela cidade toda de ônibus, torcia para o Flamengo e, no Carnaval, para a Mangueira.
Objetos pessoais que revelam essa formação do pintor são apresentados pela primeira vez ao público na mostra –entre eles, um pequeno rádio de pilha, do qual o artista não desgrudava, um pires que usava para pintar, ainda com resquícios de tinta, e um livro sobre literatura francesa.
Dias Ferreira conta que exibir esses itens só foi possível graças ao trabalho de preservação da viúva de Serpa, que era bibliotecária e manteve a memória do pintor na casa em que moravam. O espaço era também seu ateliê.
O dia a dia dele também aparece em obras de fases mais recentes, como em pinturas de 1965, quando o artista retorna ao construtivismo geométrico com “Amazônica” e “Mangueira” –na última, são recorrentes as cores verde e rosa da escola de samba.
Mas antes desse retorno, o artista plástico passou, por exemplo, pela fase “Op-erótica”, com obras pontilhadas com bico de pena e nanquim.
Ainda nos anos 1960, quando adentra um período mais abstrato e faz os “Anóbios”, Serpa também cria quadros da série “Bichos, Mulheres e Bichos”, com figuras ferozes.
Há ainda os quadros que dialogam com a pop art, caso do “Beijo” e de “Nossa Senhora”, ambas de 1966, em que ele caracteriza uma Madona quase lisérgica, com cores vibrantes.
Um de seus momentos mais contundentes está na série que ele mesmo denominou “Crepuscular”, também conhecida como “Negra”. As telas mostram figuras contorcidas e sombrias.
Dias Ferreira defende que, nelas, mais do que captar o espírito do Brasil, que entraria num regime ditatorial um ano depois, Serpa reflete a agonia de outras crises humanitárias de sua época, como a Guerra do Vietnã.
Integram a mostra ainda um desenho que Serpa fez poucos dias antes de morrer e as “Geomânticas”, que revelam o misticismo do pintor.
Para Dias Ferreira, é a obsessão pelas artes visuais que atravessa a curta carreira e vida do carioca que, a dois anos do centenário de seu nascimento, serve como uma espécie de “nódulo central” dos movimentos de sua época.
Cultura
Quarta-feira, 9 de outubro de 2024
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