Cultura
Quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

‘Songbird’, filmado às pressas na quarentena, é um thriller dispensável

TETÉ RIBEIRO
FOLHAPRESS – Concebido, escrito, produzido, filmado, editado e lançado desde que a primeira quarentena foi anunciada, em março do ano passado, e tendo a Covid-19 como inspiração, “Songbird” deixa evidente que é um filme oportunista e feito às pressas. O que não é necessariamente ruim. Mas há outros problemas.
A história se passa em Los Angeles, em 2024, e apresenta uma realidade ainda mais desesperadora do que a atual. O coronavírus está na versão 23, com índice de mortalidade de 56%, já dizimou 110 milhões de pessoas só nos Estados Unidos e leva só 48 horas para acabar com a vida de seu hospedeiro depois de o infectar.
O país inteiro está há 213 semanas em lockdown e as constantes mutações do vírus inutilizam todas as vacinas.
Só podem sair na rua os curados e os imunes, identificados por uma cobiçada pulseira amarela. Além dos “munies”, como se apelidaram os imunes, que trabalham quase todos como entregadores, a cidade tem basicamente mais duas categorias de pessoas.
São eles os infectados e seus contatos mais próximos, levados à força para temidos “acampamentos-Q”, onde fazem quarentena e de onde poucos saem vivos; e os não infectados, trancados em casa e vigiados por guardas armados.
“Se ousarem pisar na rua, serão baleados”, avisa constantemente o todo-poderoso Departamento Sanitário, que tomou conta da coisa toda.
Esse poderia ser o cenário de uma obra relevante que tratasse das consequências de se viver numa sociedade ultra controlada, da batalha dos cientistas e dos trabalhadores de saúde que enfrentam um inimigo forte e imprevisível, entre tantas outras questões éticas e filosóficas.
Em vez disso, o filme dirigido por Adam Mason -e escrito por ele e Simon Boyes- usa a distopia como desculpa para um melodrama sem muito apelo e uma série de cenas de ação filmadas com uma câmera que não para quieta por um minuto e dificulta sobremaneira a suspensão da descrença.
Nico, o protagonista, vivido por K. J. Apa, de “Riverdale”, é um entregador imune e ciclista que trabalha numa espécie de Amazon clandestina atendendo os ricos, enquanto sonha com o dia em que poderá ter algum contato físico com sua namorada, Sara, interpretada por Sofia Carson, uma garota latina não infectada que vive com sua avó, e que ele só conhece por chamadas de vídeo e conversas através da porta fechada da frente da casa dela.
Quando a avó da menina é infectada, Nico se desespera e pede ajuda para os seus clientes mais fiéis, William, vivido por Bradley Whitford, e Piper Griffin, papel de Demi Moore, com um cabelão até a cintura, que vende as pulseiras amarelas que identificam os imunizados falsificadas por debaixo dos panos.
Em vez de ajudar o courier, Piper avisa o sádico supervisor do Departamento Sanitário, papel de Peter Stormare, e assim começa uma perseguição frenética pela cidade, recheada de mortes aleatórias e tiros por todos os lados.
Tem ainda algum sexo, já que o milionário inescrupuloso William Griffin tem uma amante bem mais jovem, May, papel de Alexandra Daddario, uma aspirante a cantora que se mudou para Los Angeles contratada por uma gravadora mas teve seu plano abortado quando foi decretado o lockdown.
Se “Songbird” tem algum tipo de moral da história, a única possibilidade explícita é que os ricos poderão sempre comprar o que querem, seja do jeito que for, e seguirão explorando os mais pobres.
Quem precisa de um thriller de ficção científica feito nos moldes da triste realidade atual para concluir o óbvio?
Mas nem tudo é dispensável nesse filme. É impressionante o que o diretor consegue fazer com um elenco que não se encontra (com algumas exceções) e as poucas opções de locação.
As imagens captadas por celular, câmeras portáteis e até cenas inteiras mostradas por câmeras de segurança não parecem forçadas nem feitas para exibir o esforço da produção. Para os que se impressionam com isso, pode ser um atrativo.
Pena que a ressonância com o mundo real seja tão desperdiçada.