Cultura
Segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Filme ‘Cercados’ traz os bastidores do jornalismo no ano da pandemia

VICTOR PAROLIN
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O quê, quem, quando, como, onde e por quê são as perguntas básicas a serem respondidas por um jornalista no dia a dia da profissão.
Caso o jornalista em questão seja Ricardo Villela, diretor-executivo de jornalismo da TV Globo, e caso o dia em questão seja o da divulgação do vídeo de uma reunião ministerial, surge uma sétima pergunta. “Ricardo, ‘bosta’ a gente bota ‘pi’ ou não?”
“Não, ‘a bosta da Folha’ não”, responde Villela, sabendo a qual frase do presidente Jair Bolsonaro a colega de Redação estava se referindo.
O diálogo é um exemplo dos registros de bastidor do noticiário no documentário “Cercados – A Imprensa Contra o Negacionismo na Pandemia”.
O filme, que agora estreia no Globoplay oferece ao espectador um ângulo inédito para cenas que marcaram a cobertura do coronavírus.
Quando uma pane interrompe a transmissão da abertura do Jornal Nacional, por exemplo, uma equipe de filmagem do documentário estava no switcher, a sala de controle das câmeras, e flagrou o espanto dos operadores.
Em outra ocasião, a câmera registra o momento em que um videorrepórter da TV Ceará, afiliada da TV Cultura e da EBC, recebe áudios de seus familiares sobre o agravamento do quadro clínico do avô, internado com Covid-19.
O documentário acompanha profissionais de diferentes veículos, mas com a TV Globo em papel de destaque.
Numa reunião de pauta do Jornal Nacional de maio, o espectador observa William Bonner relatar cansaço pela carga de trabalho e criticar o tom que ele mesmo adotara para uma notícia do dia anterior. “Tinha um tom condenatório na minha voz”, afirma.
A notícia em questão era sobre a falta de respiradores em hospitais do Amazonas e trazia o caso de médicos que improvisaram um respirador com um saco plástico.
“Poderia ser um esforço heroico para salvar uma vida. Eu não tive a oportunidade de enxergar isso com clareza”, afirma o apresentador.
“Cercados” não se restringe ao noticiário da questão sanitária da pandemia, “até porque as coisas se misturaram muito”, diz o diretor Caio Cavechini, que recentemente dirigiu uma série documental sobre Marielle Franco, também disponível no Globoplay.
Para abarcar a crise política, o filme acompanha repórteres em Brasília, entre eles Ricardo Della Coletta, da Folha, nas entrevistas coletivas de Bolsonaro na portaria do Palácio da Alvorada, a residência oficial da Presidência.
O nome do filme, inclusive, faz uma alusão ao “cercadinho”, como é conhecido o espaço destinado aos profissionais da imprensa no local.
No dia 25 de maio, três dias após a divulgação da íntegra dessa reunião ministerial, veículos como TV Globo e Folha suspenderam temporariamente a cobertura por ali por falta de segurança, depois de uma série de hostilidades por parte dos apoiadores do presidente aos jornalistas.
“Foi um dia que eles passaram de todos os limites”, afirma em cena do documentário Ali Kamel, que é diretor-geral de jornalismo da Globo.
Kamel conta que, na ocasião, ligou para João Roberto Marinho, presidente do conselho editorial do Grupo Globo, e recebeu o aval para cessar a cobertura no Palácio da Alvorada.
“Cinco minutos depois de divulgar a matéria [sobre a suspensão], a Folha também divulgou que estava saindo, mas não foi nada combinado.”
“Cercados” está longe de ser um documentário de entrevistas, mas traz também depoimentos de diretores e editores-executivos dos principais jornais do país.
Em meio a tomadas das Redações vazias, explicam as peculiaridades desta cobertura, da dificuldade de dimensionar uma tragédia com um saldo de óbitos tão grande ao desafio do combate às fake news.
“Em uma pandemia, você se informar com fake news pode custar sua vida”, afirma no filme Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha.
A narrativa segue uma ordem cronológica, “com algumas subversões”, lembra Cavechini, diretor do longa.
Vai da presença de Bolsonaro em atos antidemocráticos, em março, até a chegada à marca de 100 mil mortes pela Covid-19 no país, em agosto.
O período mais intenso das filmagens próprias, porém, foi de abril a julho, quando a produção do filme chegou a ter equipes acompanhando jornalistas simultaneamente em cinco diferentes cidades pelo Brasil, quase todos os dias.
“Queria um documentário de vivência em tempo real e não uma reflexão a posteriori”, diz Cavechini. Somados, os registros de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Manaus e Fortaleza totalizam 400 horas.