LAURA MATTOS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Lá pelo início da quarentena, Zeca Camargo saiu do banho, no seu apartamento no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, e deu de cara com um macaco. Sem cerimônia, ele comia frutas na cozinha. O apresentador de TV deu um grito, assustado, e o animal pulou de volta para a árvore que fica próxima à janela. Desde que as pessoas se isolaram em casa, a bicharada circulava sem medo por ali, uma região arborizada.
Zeca passou a abrir as janelas só quando pudesse ficar de guarda para espantar os “vizinhos” e usou a história como base para um texto fictício sobre a pandemia. “Natureza” é um dos 20 contos de “Quase Normal”, o primeiro livro de ficção do jornalista, que já publicou seis com grandes reportagens, entre eles “De A-ha a U2”, que reúne bastidores de suas entrevistas, e “Elza”, biografia de Elza Soares.
Zeca, 57, conta que fazia muito tempo que sentia vontade de escrever ficção, mas tinha medo de se aventurar em histórias inventadas. O confinamento criou, em suas palavras, a oportunidade de ouro: estava sozinho em casa, tinha tempo, e a nova realidade era um ótimo tema. “O cotidiano nesse isolamento é chato, mas tem um lado surreal que torna o assunto interessante”, diz.
Nos contos, ele explora as bizarrices reais do confinamento e eleva o tom do absurdo. “Bico”, por exemplo, retrata uma festa online com temática dos anos 1980, que toca músicas das décadas de 1990 e 2000 e na qual surge uma mulher misteriosa chorando no meio daquele monte de quadradinhos de gente dançando. Em “Assintomático”, um homem recebe diagnóstico de Covid-19 e sai em busca das melhores oportunidades para contaminar outras pessoas. “Chat” narra o primeiro encontro de um casal que, no auge do confinamento, só se relacionava a distância. No texto, Zeca alterna trechos da conversa romântica do jantar presencial com a pornografia das mensagens online.
O jornalismo não deixa de estar presente na observação da realidade e na busca por histórias reais que inspiram os contos. Zeca faz um mosaico de situações típicas destes tempos -a hiperconvivência dos casais, a dificuldade de cuidar das crianças, as reuniões de trabalho online, o sexo virtual, a solidão, a medição de temperatura nos locais públicos, a enxurrada de lives, o tabu dos encontros familiares, a mania de cozinhar e postar fotos de pratos no Instagram. São retratos da pandemia de uma classe privilegiada, e Zeca diz que “a gente sabe que o Brasil não é isso”.
Ele deixou para o último conto, “Castanhas”, o drama de uma criança nordestina que segue catando caju sem fazer ideia do que é Covid-19, até que ela atinge sua família. “É o conto mais ambicioso, porque falo de uma realidade que não é a minha e busquei inspiração em um acervo de histórias e personagens com os quais tive contato.”
Embaralhados à ficção, há outros relatos autobiográficos além da história dos macacos.
Em “Ciclos”, é Zeca o protagonista que se desespera com a necessidade de usar a lavadora de roupas e só dá conta da tarefa depois de recorrer a amigos em grupos de WhatsApp e tutoriais no YouTube. “Como no começo da pandemia a gente achava que iria durar pouco tempo, fui usando as roupas sem colocar para lavar. Só lavava as cuecas no banho. Usei todas as roupas do guarda-roupas”, conta, rindo.
Ele também partiu da sua experiência para criar, no conto “Acareação”, um personagem que vai ao supermercado com máscara e é abordado por fãs que tentam descobrir se ele é galã de novela.
Da mesma forma, são seus os hábitos do psicanalista do conto “Jornal”, que gosta de ler notícias no papel, monta quebra-cabeças e alterna dias de aula online com um personal trainer de São Paulo e outro do Rio. A vida de Zeca foi dividida entre as duas cidades nos 24 anos em que trabalhou na Globo, de onde saiu em junho.
Contratado como diretor e apresentador da Band, passou em agosto a trabalhar no Morumbi, em São Paulo. Da rotina dos primeiros meses, a quarentena virou tempo de muita novidade. Mesmo atarefado, ele arruma tempo para seguir escrevendo contos sobre a pandemia. Mas torce para que “Quase Normal” não tenha um segundo volume:
“Tomara que a pandemia não dure o suficiente para isso!”, afirma.
Cultura
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