PHILLIPPE WATANABE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Prêmio Nobel de Química de 2020, 100% feminino, foi para Emmauelle Charpentier, do Instituto Max Planck, da Alemanha, e Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia em Berkeley, por terem aberto a possibilidade de reescrever o código da vida a partir de um método de edição genética.
O anúncio das laureadas ocorreu na manhã desta quarta-feira (7), na Academia Real Sueca de Ciências, em Estocolmo, na Suécia.
As pesquisadoras desenvolveram o método Crispr-Cas9 (pronuncia-se “crísper”) de edição do genoma, uma tesoura genética criada há apenas oito anos e que já está ajudando na busca da cura de doenças genéticas, como anemia falciforme, e de câncer.
Com a técnica, é possível editar com precisão o DNA de micro-organismos, plantas e animais.
“Espero que seja uma mensagem positiva para as meninas jovens que queriam seguir o caminho da ciência. Mulheres na ciência podem ter um impacto com a pesquisa na qual trabalham”, disse Charpentier. “Mas não só para mulheres. Vemos um desinteresse em seguir esse caminho, o que é preocupante.”
A descoberta da técnica de edição ocorreu graças ao estudo do sistema imune de bactérias e micro-organismos ancestrais. Da mesma forma que os seres humanos, bactérias também podem ser infectadas por vírus e, quando isso acontece, elas “guardam” um pedaço do DNA do invasor. Essa região com pequenos pedaços de DNA de memória são chamadas de Crispr (acrônimo para “repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas”).
Nessas bactérias, Charpentier descobriu uma molécula de RNA, chamada tracrRNA. A pesquisadora observou que essa estrutura se ligava ao RNA Crispr (transcrição do DNA Crispr, de memória de infecções) e, com duas proteínas da bactéria, Cas9 e RNase III, cortava o RNA Crispr em pedaços menores.
A dupla descobriu então que a estrutura Crispr e a proteína Cas9 vasculhavam a bactéria em busca do DNA viral que desse um “match” com a memória de infecções passadas. Quando isso ocorria, a tesoura molecular formada por Crispr e Cas9 extirpava o vírus.
Com a evolução da pesquisa das cientistas, ela conseguiram simplificar o processo. Desse modo, com apenas duas estruturas (o RNA guia e a proteína Cas9), as pesquisadoras viram que era possível editar, como quisessem, estruturas de DNA.
“O enorme poder dessa tecnologia significa que temos que usá-la com grande cuidado”, disse Claes Gustafsson, presidente do Comitê do Nobel para Química e professor de bioquímica médica. “Mas é igualmente claro que ela irá dar grandes oportunidades para a humanidade.”
Mas o poder e as possibilidades da técnica causaram preocupação para suas criadoras. Já nos primeiros anos após o desenvolvimento, Doudna propôs uma espécie de “trégua” referente ao assunto. A pesquisadora defendia a criação de diretrizes para quem estivesse usando a ferramenta em células embrionárias humanas.
Em 2018, o Conselho Nuffield de Bioética, importante organização independente do Reino Unido, afirmou que editar o genoma de embriões e células germinativas (óvulos e espermatozoides) pode ser eticamente aceitável em algumas circunstâncias, como na busca pelo bem-estar daquele que ainda vai nascer. Mas, para isso, a organização defende que, com a aplicação das técnicas de edição, não haja ampliação de discriminação, injustiça ou divisões na sociedade.
No Brasil, a lei 11.105, de 2005, que trata de biossegurança, em seu artigo 6º, proíbe “engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano”.
Segundo Lygia da Veiga Pereira, chefe do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP (Universidade de São Paulo), o entendimento geral da comunidade científica é de que ainda não estamos prontos para esse tipo de modificação mais profunda, mas já há discussões sobre quando estaremos e em que circunstâncias tais mudanças em embriões serão permitidas.
“A questão delicada no Crispr é você fazer bebês geneticamente modificados”, diz Pereira. “Se você modifica óvulos e espermatozoides, é como se estivesse introduzindo modificações no genoma da humanidade.”
Mudanças genéticas feitas em células embrionárias poderão ser passadas adiante, para as próximas gerações. O mesmo não ocorre quando você faz mudanças em partes do DNA de um organismo adulto.
“Você pega a medula óssea de uma pessoa com HIV positivo, modifica para que as células sejam resistentes à infecção e repõe aquela medula. A pessoa começa a produzir um sangue que não é infectado pelo vírus. Isso é sensacional”, diz a pesquisadora da USP. “O impressionante é que isso que estamos falando já é daqui a pouco, isso já está em teste clínico. É uma ferramenta muito potente e muito simples de se usar.”
Além da questão ética, há ainda certas imprecisões na técnica que requerem atenção e cuidado, como a possibilidade de mirar um pedaço do DNA e acabar acertando regiões indesejadas. A especialista da USP afirma que ainda não se demonstrou a segurança total da técnica.
“Como toda ferramenta e tecnologia, você tem a possibilidade do mau uso”, diz Pereira. Daí a importância de mecanismos e leis de controle.
O mau uso da técnica já se concretizou recentemente. No fim de 2018, o cientista chinês He Jiankui afirmou ter criado os primeiros bebês gêmeos do mundo alterados geneticamente para serem mais resistentes à infecção pelo HIV. A comunidade científica, inclusive a chinesa, classificou a ação como antiética e uma “loucura”.
Por suas experiências com casais, o cientista foi demitido da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China, em Shenzhen, e condenado à prisão, com dois assistentes.
Em meio à repercussão do caso, cientistas de diversos países, em artigo na revista Nature, pediram uma moratória mundial de técnicas de edição genética em células germinativas, para assim evitar o nascimento de novos bebês geneticamente modificados.
Outra polêmica acerca do tema ocorre há anos -uma guerra de patentes relacionada ao método.
Vários meses após a publicação de Charpentier e Doudna que mostrou a técnica, pesquisadores do Instituto Broad, liderados por Feng Zhang, publicaram uma pesquisa mostrando a possibilidade de edição genética com Crispr em células eucariontes.
A partir de então, teve início a batalha de patente nos EUA do método entre a Universidade da Califórnia e o Instituto Broad. Segundo reportagem da revista Science, na Europa a disputa foi ganha pela Universidade da Califórnia e Charpentier.
A diferença do apresentado pelos dois grupos reside, basicamente, no RNA guia. Zhang e sua equipe apresentaram um RNA guia composto de duas moléculas, enquanto Charpentier fazia o mesmo processo com uma única molécula -o que é o padrão atual.
“Eu achei maravilhoso elas terem ganhado o Nobel. Mostra quem realmente descobriu”, diz Pereira. “É como se a comunidade cientifica dissesse: ‘Independentemente dos juízes de patente, vocês duas fizeram essa revolução’.”
A premiação do Nobel de 2020, de 10 milhões de coroas suecas -equivalente a pouco mais de R$ 6 milhões de reais-, será dividida igualmente entre as pesquisadoras. O dinheiro é proveniente de um fundo com 4,6 bilhões de coroas suecas, deixado por Alfred Nobel (1833-1896).
Além do valor, os vencedores ganham uma medalha com o rosto de Nobel e um diploma.
A química era a ciência de maior importância no trabalho de Nobel, inventor da dinamite. Ele também foi responsável pelo desenvolvimento de borracha e couro sintéticos. Nobel registrou 355 patentes em 63 anos de vida.
Internacional
Terça-feira, 23 de julho de 2024
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