Cultura
Quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Pornô-soft da Netflix, filme ‘365 Dias’ é um problemão

ÚRSULA PASSOS
FOLHAPRESS) – Há dias o filme mais visto pelos brasileiros na Netflix, inclusive no Dia dos Namorados, é o “soft porn” polonês “365 Dias”.
Na internet, as opiniões se dividem. De um lado, pessoas que se emocionaram, acharam excitante e agora estão obcecadas com Michele Morrone, o ator principal. De outro, os que acharam que o filme, machista, romantiza o sequestro e o abuso físico e psicológico de mulheres.
O filme é um problemão. Ali, desde o começo, está tudo errado. Numa ilha, um jovem vê uma mulher a distância. “Mulheres bonitas são o paraíso dos olhos, o inferno da alma”, diz seu pai. Ao que o filho responde: “E o purgatório do bolso”. Eis a ética do que se seguirá. Aviso de gatilho: muito machista.
Depois é só ladeira abaixo. O tal jovem é um mafioso italiano muito musculoso, que assume os negócios da família após o assassinato do pai. Cinco anos depois, ele sequestra uma jovem executiva polonesa e lhe dá um ano, em cárcere privado, para se apaixonar por ele. O brucutu tem uma explicação: ela seria a mulher que ele viu na ilha, pela qual se apaixonou e que buscava por tanto tempo.
É claro que antes disso, Laura, nossa “heroína”, nos foi brevemente apresentada como uma mulher bem-sucedida, dura em reuniões de negócios, mas num relacionamento frustrante com um babaca que não dá a atenção que ela quer.
Conhecemos os dois em sequências de cenas paralelas e, enquanto Massimo, o italiano mafioso tatuado, está colocando o pênis dentro da boca de uma aeromoça em seu jatinho particular, Laura está na cama com seu vibrador porque seu boy a rechaçou.
Instaura-se um jogo de gato e rato entre eles, no qual o homem entra com o poder da força e da grana e a mulher, com o corpo. A sequestrada se mostra resistente e escandalizada pela atitude –criminosa– de Massimo, mas se arruma com roupas e maquiagem incrivelmente atraentes todos os dias e passa a flertar com ele. O cara, por sua vez, sempre sem camisa, a leva para fazer compras e serve grandes banquetes. Afinal, não esqueçam da máxima sobre o bolso. Mulheres se compram.
Não é spoiler dizer que ela vai se apaixonar mesmo por ele e que vão fazer sexo. Muito sexo. Em iates no mar azul da Itália. Uma mulher sequestrada, dopada e chantageada se apaixona pelo criminoso e passa a “justificar” suas atitudes. Eles se tornam um casal. Ele reclama das roupas curtas dela, ela tem ciúme da ex. Tudo errado.
Dito isso, resta saber: por que é o mais visto na Netflix no Brasil? Porque as pessoas talvez não estejam procurando nele um romance no qual inspirar suas vidas e relacionamentos, mas sim tomando-o pelo que ele é: um pornôzinho.E, quando se trata de desejos e daquilo que nos faz viajar de olhos fechados na masturbação, não há moral, ética, feminismo, regra nenhuma que dê conta de segurar a onda.
O filme romantiza o abuso? Sim. Ele incita o abuso? Não. Isso seria tão absurdo quanto dizer que jogos de videogame incitam a violência real. Que mal há em fantasiar com um sequestrador italiano mafioso musculoso e tatuado? Dá-lhe tanquinho, muques e mamilos intumescidos.
Homens e mulheres em regozijo com esse filme não querem que seus companheiros sejam assassinos impiedosos e violentos fora do quarto, mas talvez queiram ser subjugados sexualmente. Abrir o jogo sobre isso não enfraquecerá a defesa por salários iguais ou a justiça para feminicidas.
Os desejos são construídos de fora para dentro por séculos de exploração feminina e produtos desenhados para a subjugação da mulher? Sim. Mas, enquanto o mundo não muda, as mulheres devem se abster de gozar para não gozar sob o patriarcado?
Se o que deixa uma mulher excitada é o mafioso sussurrando em seu ouvido enquanto puxa seu cabelo “Vou te foder tão forte que vão te ouvir em Varsóvia” ou um desconstruído dizendo “vou fazer aquele pão de fermentação natural e kombucha” enquanto faz cafuné o problema é de cada um, e não somos uma sociedade melhor ou pior por conta disso.
Numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em 2013, a feminista Naomi Wolf falou sobre o sucesso de “Cinquenta Tons de Cinza”, outro “soft porn” machista. “Seria interessante ver se ‘Cinquenta Tons’ seria tão popular num mundo em que as mulheres estivessem recebendo mais atenção e carinho de seus parceiros. Suspeito que elas estejam entediadas sexualmente.”
Aos que assistem à Netflix e moram sozinhos: tem coisa mais sexualmente entediante do que uma pandemia que exige distanciamento social?