Cultura
Terça-feira, 23 de julho de 2024

Filme ‘Colectiv’ sobre incêndio em boate é política pura e fascinante

IGOR GIELOW
FOLHAPRESS – Um incêndio mata jovens num show dentro de um clube sem condições de segurança. Multidões vão à rua protestar contra os serviços do governo. Jornalistas expõem mazelas do Estado, ensaiam-se mudanças, mas tudo volta ao antigo normal.
Boate Kiss? Junho de 2013? Escândalos políticos? Não, mas poderia ser, e esse é o apelo universal do impressionante documentário “Colectiv”, do romeno Alexander Nanau.Obra de 2019, ele estará disponível online nesta sexta (25) no festival É Tudo Verdade.
O título remete ao nome de uma boate que pegou fogo em 2015, sob circunstâncias semelhantes à da tragédia brasileira ocorrida em Santa Maria dois anos antes.
Uma banda encerrou seu show com uma demonstração pirotécnica tosca num ambiente sem saídas de emergência suficientes. Resultado, 27 mortos e 180 feridos. Mas a desgraça é só um McGuffin, o artifício hitchcockiano que escamoteia o real sentido da trama.
E ela é ainda mais sombria, ainda que o impacto do vídeo do incêndio seja grande e os efeitos do incidente permeiem todo o filme.
Além das questões de fiscalização, houve 37 mortes subsequentes ao em hospitais.
A maioria, por infecção, enquanto o governo evitava mandar pacientes graves para países vizinhos mais bem equipados por uma questão de imagem política.
Numa nação que vive espremido entre sua herança ditatorial comunista e uma democracia capenga e corrupta, coube a um jornal de esportes disparar a revolta popular.
Liderados por Catalin Tolontan, editor-chefe da Gazeta Esportiva, de Bucareste, repórteres descobrem que os desinfetantes usados nos hospitais do país eram tinham diluição dez vezes acima do que deveriam por lei.
À soberba do governo emergiu uma rocambolesca trama ligando o fabricante monopolista dos desinfetantes (que aparece morto de forma suspeita), máfias locais e diretores de hospitais, com direitos a firmas offshore e tudo com que o brasileiro se acostumou nos últimos anos.
Resultado, gente nas ruas e o gabinete governista sendo substituído por um grupo de tecnocratas que segurariam a onda até a eleição no fim de 2016.
Até aqui, o filme parecia destinado a ser mais uma hagiografia de jornalistas heroicos contra o sistema, algo sempre sujeito a glamourização indevida, mas ele ganha uma adição espetacular.
O novo ministro da Saúde, um jovem que não estaria deslocado na força-tarefa da Lava Jato em termos de voluntarismo, deu acesso total a Nanau.
Assim, reuniões incrivelmente francas sobre como lidar com a crise, com a imprensa e contra o tal do sistema são vistas por dentro.
É política crua, no pior sentido, mas fascinante. Claro, o ministro Vlad Voiculescu sabia que estava sendo gravado, e isso gera suspeita sobre tal pureza de princípios. Ele tentou se lançar, sem sucesso, na política depois –e o documentário não passa por isso.
A narrativa de Nanau é uma aula de edição. Ele gastou 18 meses montando 14 meses de gravações. Não há nenhuma entrevista, nenhum texto, nenhum “off”. A história é montada cronologicamente, como se fosse um filme de ficção.
A ambição tem preço, e muitas vezes uma legenda sobre quem é quem ou com um pouco de contexto ajudaria bastante. Mas o resultado geral é funcional, ainda que monocórdico e por vezes cansativo.
A costura é pontuada pela lembrança da tragédia, encarnada na figura esquálida de Tedy Ursuleanu, uma jovem gótica horrivelmente desfigurada pelo fogo.
Ela acaba se aproximando do ministro, e uma arrepiante exposição de fotografias revelando seu corpo mutilado acaba parando dentro do gabinete de Voiculesco.
Pais de jovens mortos também surgem, culminando numa tocante cena final, que dá a dimensão humana da exposição de mazelas do Estado.
Em lados opostos, Tontolan e Voiculesco são os herois do drama na tela. O ministro vira alvo de uma campanha de difamação pela mídia amiga do antigo regime, e a eleição por fim traz uma revoltante vitória consagradora dos governantes de outrora.
O diretor poupa o espectador de suas visões explicitamente, mas em entrevistas comentando seu trabalho já sob o impacto da pandemia, fez paralelos entre seu país e o Brasil de Jair Bolsonaro ou os Estados Unidos de Donald Trump. Com o que “Colectiv” mostra, nem precisaria.