Cultura
Sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Peça inaugural de Nelson Rodrigues volta aos palcos entre a impotência e o desejo

Um vozeirão preenche o Teatro Nair Bello, no centro de São Paulo. “V-8! Imagine-se deslizando nesta máquina robusta, cada arrancada é um espetáculo de potência.” Conforme o anúncio toca num rádio de madeira, a bela Lídia, vivida por Eugênia Granha, desce as escadas do cenário roupão branco, acetinado, pernas à mostra. No centro do palco, Olegário, papel de André Garolli, encapotado numa cadeira de rodas, se contorce de ciúmes num sussurrado “V-8, V-8”
Pouco antes, o fofoqueiro Joel, fizera a revelação. “Todo mundo chamava dona Lídia assim no Grajaú”, diz o personagem de Mauricio Bittencourt, acentuando, pelo sotaque carioca, certo desprezo pelo bairro na zona norte do Rio de Janeiro onde a moça vivia antes de se casar com o sujeito mais velho. “Era muito namoradeira.”
O quadro é um dentre vários que sugerem como a visceralidade de Nelson Rodrigues já era evidente na sua primeira peça, “A Mulher sem Pecado”, de 1941, agora montada pelo Grupo Tapa.
Em cena, um industrial faz de tudo para confirmar as suspeitas de que está sendo traído pela esposa após ele ter sofrido uma paralisia. Pede que o motorista Umberto Bruno Barchesi e a empregada Inézia Melina Soulz espiem a moça, vasculha seu passado e tortura a garota para que confesse ser infiel ao menos em pensamento.
A montagem desse drama seminal, mas pouco frequente nos palcos, encerra um ciclo da companhia pelas seis peças psicológicas do dramaturgo um trajeto iniciado há mais de 40 anos, quando Eduardo Tolentino de Araújo dirigiu “Viúva, porém Honesta”.
“Nós não temos no Brasil uma tradição de montar o que não seja canônico”, diz Tolentino. “À época, Viúva era considerada menor, então fomos comendo pelas beiradas. Foi uma montagem que rendeu muito material crítico, prêmios, viagens internacionais, pôs o Tapa num outro patamar.”
Agora, a companhia segue esse namoro numa obra dita menor, mas que, segundo o encenador, antecipa ideias que seriam refinadas numa carreira polêmica até hoje.
As reações durante a pré-estreia da peça, para estudantes, dão indícios dessa atualidade. O público jovem se dividia entre o espanto e o riso contido ao ouvir sugestões como “por que a mulher bonita não pode ser uma namorada lésbica de si mesma?”, ou “a mulher de um paralítico tem quase a obrigação de ser infiel”.
“Simbolicamente, está se falando da impotência. Olegário está brochado. Você ri disso, é patético”, afirma Garolli, cujo protagonista alucinado conduz essa peça que, como o próprio autor dizia, começou a ser escrita como uma chanchada. “Se você levar a ferro e fogo, achar que está se expondo uma pessoa com deficiência, fica constrangedor de fazer. Tem de abstrair o olhar.”
“Hoje há o risco de tentar atualizar o Nelson e pasteurizar os arquétipos que ele propõe”, diz Garolli, para quem os traços dos personagens rodrigueanos ainda se refletem em boa parcela do Brasil. “Não podemos esquecer que estamos numa bolha.”
O ator, também professor de teatro, cita como as opiniões sobre o dramaturgo oscilam com o tempo ora um imoral reacionário, ora o papa do teatro brasileiro e como seus textos podem incomodar em tempos de pautas identitárias. “Alguns alunos vieram me perguntar se podia rir, porque eles estavam meio constrangidos.”
Felizmente para quem quer conhecer mais desse autor, a cena de São Paulo tem se debruçado mais sobre ela estão em cartaz duas montagens do Teatro Oficina, “Senhora dos Afogados” e “Os Sete Gatinhos”, outra de “O Beijo no Asfalto”, pela Cia Grite, além da terceira edição de “17x Nelson”, que embaralha fragmentos de toda sua dramaturgia.
“‘A Mulher sem Pecado’ faz uma defesa da mulher, o texto justifica ela inteiramente. Lídia poderia ser vítima de um feminicídio”, diz o diretor. “A grande dificuldade de montar Nelson é que não tem subtexto. É uma mistura do que é dito, do que você pensa, com uma terceira interferência do autor, criticando a situação. Quando a Lídia diz que todas as mulheres em algum momento querem ver o marido morto, mesmo as felizes isso é uma fala épica, brechtiana.”
Tolentino cita o monólogo, já perto do final da peça, em que a personagem de Eugênia Granha desabafa sobre toda a situação, trocando confissões com a plateia e com a mãe de Olegário. Essa senhora louca, vivida por Ana Carlota France, passa quase toda a peça quieta, sentada, enrolando um paninho, mas atrai tanto a atenção quanto as outras personagens.
“Lídia é a primeira de uma linhagem de mulheres oprimidas e conflitantes no teatro do Nelson. Ela é uma Bovary “, afirma Granha, que é bailarina e agora tem seu primeiro grande papel no teatro. “A manifestação do desejo aqui é a grande ameaça ao masculino. É muito sensível e também agressivo. No final, mesmo com um sentimento de culpa, ela diz tudo que é inconfessável.”
O inconfessável, no caso, manifesta o inconsciente um aspecto evocado, por exemplo, para entender os diferentes planos de “Vestido de Noiva”, a segunda peça de Nelson, considerada um divisor de águas para o teatro nacional moderno. Bem diferente da recepção inicial de “A Mulher sem Pecado”.
O fato é que, como Ruy Castro narra na biografia “O Anjo Pornográfico”, o texto penou para sair do papel. Ciente de como o soaria imoral para a época, Nelson foi atrás da aprovação de autoridades da época, como o jornalista Henrique Pongetti, bastante receptivo, e Carlos Drummond de Andrade que, mulherengo à mineira, sorriu da frase “a fidelidade devia ser uma virtude facultativa”.
As aprovações não surtiram efeito. Teve de recorrer a uma ajuda do sobrinho de Getúlio Vargas para que o trabalho fosse encenado pela Comédia Brasileira, companhia subsidiada pelo então Serviço Nacional de Teatro. Ficou em cartaz por duas burocráticas semanas de dezembro de 1942.
O reconhecimento viria só cerca de quatro anos depois, em janeiro de 1946, após uma reestreia de “Vestido de Noiva” sob a direção de Ziembinski e cenografia de Tomás Santa Rosa. Essa segunda montagem, pelo também polonês Zigmunt Turkov, teve diversas alterações no texto, como a inclusão do monólogo de Lídia e a exclusão de uma participação infantil e ficou lotada por dois meses.
Considerando o passado, o Tapa tenta equilibrar tradição e invenção. “Odeio homenagens”, diz Tolentino, que ressalta buscar a verdade de cada autor, seja ele Nelson Rodrigues, Luigi Pirandello ou Éric-Emmanuel Schmitt —para citar os três espetáculos do grupo em cartaz. Fala também que entra com a cabeça vazia a cada novo espetáculo, e que as rubricas são descartáveis.
Ao mesmo tempo, não esconde seu estofo. “No Teatro Nair Bello, eu pensei de cara na arquitetura, lá tem aquele plano superior. Isso negocia muito com as cenografias do Santa Rosa, numa estrutura em planos.”
O que se vê no palco é uma espécie de sobrado, onde o espectador acompanha figuras fora de cena como Mauricio, o suspeito irmão de criação de Lídia, papel de Felipe Souza, ou o fantasma da primeira mulher de Olegário, na pele de Loise Teyber e espia as fantasias do protagonista, como quando ele descreve um banho da esposa. “Nelson é realista, não naturalista. A realidade tem de ser estilizada”, diz Tolentino.
Isso se reflete em gestos ousados, como quando Lídia, numa discussão com o marido, diz que aprendeu mais no colégio interno do que no casamento, e se lança fogosa sobre o paralítico. “Durante os ensaios, a gente não queria uma coerência lógica para as personagens”, afirma Granha. “Cada vez que entro em cena, sou diferente.”
Esse arrojo também perpassa os figurinos com destaque ao preto e branco, evocando o cinema da época, além de pequenas intervenções musicais, de canções inocentes à ária “Vesti la Giubba”, num paralelo com a cultura da rádio no país. “O Nelson bebe muito do folhetim radiofônico, um gênero que nunca saiu da nossa televisão”, diz Tolentino. “O país explodindo, e as pessoas discutindo quem matou ou não matou a mulher da novela.”
A MULHER SEM PECADO

  • Quando Sex. e sáb., às 20h; dom., às 18h. Estreia nesta sex. (24), até 7 de dezembro.
  • Onde Teatro Nair Bello – r. Frei Caneca, 569, São Paulo
  • Preço R$ 60 a R$ 120
  • Classificação 14 anos
  • Elenco André Garolli, Eugênia Granha, Bruno Barchesi
  • Direção Eduardo Tolentino de Araujo
  • Link: https://bileto.sympla.com.br/event/111986/d/343761/s/2329196

Fonte: FolhaPress