
No começo, “Tempo Suspenso”, o mais novo filme de Olivier Assayas, primeiro do diretor após a minissérie “Irma Vep”, parece aborrecido e afetado.
Não pela narração, que nos informa sobre uma casa em uma região rural, seus arredores, as lembranças de infância trazidas pela casa. Mas pela maneira como Paul Berger, personagem de Vincent Macaigne, é repreendido pelo irmão Etienne, vivido por Micha Lescot, que o chama de consumidor compulsivo.
Paul tinha acabado de receber um par de meias especiais de uma grande empresa de vendas online, depois de, em dias anteriores, ter recebido outras encomendas da mesma empresa, incluindo um iPad, “para ler jornais”, ele diz. Compra para se aquietar em dias difíceis.
Ou seja, seu irmão tem razão. O problema é a afetação com que expõe seu ponto de vista, nos dando a impressão de que será difícil acompanhar mais de uma hora e meia de lenga-lenga francês com cara de panfleto contra grandes corporações. Não ajuda que Lescot esteja o tempo todo com óculos escuros e um ar meio blasée.
Quando lembramos que Assayas tem errado mais do que acertado em filmes recentes, o receio se acentua. Seu último bom filme para cinema é “Horas de Verão”, de 2008. De lá para cá, cinco longas-metragens falhados e duas minisséries. Convenhamos, é pouco para quem já fez “A Criança do Inverno”, em 1989, e “Água Fria”, em 1994.
Talvez pela consciência de que seus melhores dias ficaram no passado, o cineasta ensaia um movimento reflexivo e moderadamente autobiográfico, que lida com os temores das pessoas durante o auge da pandemia da Covid-19 e a necessidade de confinamento. É um retorno ao tom de “Horas de Verão”, embora seus conflitos sejam muito mais leves.
Os dois irmãos estão com suas namoradas na casa de campo onde viviam com seus pais, num momento, a primavera de 2020, em que a quarentena atingia a França. Longe das pessoas, longe da cidade, eles procuram se preservar da tensão que era palpável e, para muitos, insuportável. Um pacto pela comunhão em dias difíceis.
Paul é cineasta, tem reuniões frequentes em vídeo com sua ex-mulher e companheira de trabalho. Etienne é jornalista musical e dá um jeito de montar um estúdio portátil para seu programa de rádio. Naturalmente, os irmãos e suas companheiras falam muito de música, cinema e artes em geral, em conversas quase sempre amistosas.
Por meio dos diálogos, escritos pelo próprio diretor, nos lembramos também das dúvidas daquela época. Devemos espirrar álcool nas compras? Melhor deixar as compras do lado de fora por quatro horas para que o vírus morra? Devemos lavar nossas roupas após ir ao mercado? Há um modo seguro de voltar a filmar?
O filme nos ganha aos poucos, conforme nos habituamos aos personagens, às suas relações, às pequenas mágoas naturais entre irmãos, à intensificação da amizade entre as namoradas. É um filme de conversas e pequenos gestos, um divertimento possível após a salvação das vacinas.
Ouvimos Jean Renoir, numa entrevista para uma emissora de rádio em 1958. Paul folheia os livros de arte que sua mãe comprava, mencionando a influência de Pierre Bonnard em seu cinema. Mas a referência maior para este filme me parece ser outra.
Paul é como Olivier Assayas, um crítico de cinema que se tornou cineasta. O filme, apesar de citar Pierre-Auguste Renoir, lembra mesmo Éric Rohmer, tanto pelas conversas constantes como pelo efeito bem-sucedido de filmar diálogos como se uma câmera estivesse escondida, tamanha a naturalidade das falas.
A trama é autobiográfica na medida em que assume, como se fossem da autoria de Paul, filmes e demais trabalhos assinados por Assayas. Mas não é um autorretrato fiel. Há humor, por exemplo, na sua caracterização como germofóbico, assim como na escolha do ator Macaigne tem sido o alter ego do ótimo cineasta Emmanuel Mouret.
Podemos dizer, com isso, que Assayas chega a Rohmer via Mouret, num percurso interessante pelo cinema francês dos últimos sessenta anos, e faz assim um de seus melhores filmes neste século.
TEMPO SUSPENSO
- Avaliação Bom
- Quando Estreia nesta quinta (20)
- Onde Nos cinemas
- Classificação 14 anos
- Elenco Vincent Macaigne, Micha Lescot, Nora Hamzawi, Nine d’Urso
- Produção França, 2024
- Direção Olivier Assayas
Fonte: FolhaPress