Cultura
Segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Conflito de valores marca ‘O Bastardo’, faroeste dinamarquês

Se um bom filme depende de um bom vilão, como queria Hitchcock, “O Bastardo” não tem do que se queixar. O nobre Schinkel (Simon Bennebjerg) não é apenas mau, ele é o que se pode chamar de o mal. Talvez sua qualidade mais vistosa seja o hábito de estuprar as criadas de seu castelo e, não raro, matá-las. O restante pode-se deduzir.
A Schinkel caberá dizer a frase que norteia o filme: “a vida é caos”. Poderia ser bem a declaração de algum dirigente de extrema-direita disposto a jogar infâmias contra qualquer adversário nas redes sociais. E Schinkel, com efeito, não poupará esforços para impedir que os sonhos de seu rival, Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen) se realizem.
Kahlen é o ex-militar que tentará conquistar um título de nobreza se demonstrar que pode implantar uma colônia no urzal, onde muitos falharam antes dele. O urzal é um território desértico e normalmente habitado apenas por bandoleiros.
Estamos na Dinamarca, meados do século 18, e, sob a intriga evidente, corre outra, nas sombras. Khalen é o bastardo da história: é filho de um senhor de terras que ele nunca conheceu com uma cozinheira (violentada pelo senhor, deduz-se). Por conta disso, a patente de capitão do exército que conseguiu já parece uma prova de seu valor: não tem nobreza, nem pistolão. Estamos numa Dinamarca dominada pela aristocracia.
Schinkel está longe de ser o único aristocrata a defender seus privilégios. Apenas exorbita no sadismo e na vilania. Estamos, a rigor, numa luta em vários frontes: há o burguês que tenta se estabelecer por mérito e esforço contra os aristocratas que buscam manter seus privilégios; há homens e mulheres de valor contra os desprovidos de valor, porém com poderes.
Esse é o quadro básico do conflito. Tudo o mais se monta sobre algumas características capazes de tornar o filme bem-sucedido. Assim, a resiliência e a altivez de Kahlen, que afirma a superioridade moral contra pessoas que veem isso como uma ameaça a seus privilégios.
Ele poderia atirar, mas não dá um tiro, como alguns grandes pistoleiros do faroeste, que fazem da contenção uma virtude. E estamos, na verdade, numa espécie de faroeste às antigas.
Mas Kahlen também defenderá uma menina cigana dos preconceituosos agressivos que aparecem (maneira de dizer que a rejeição ao estrangeiro o imigrante, no caso da gente de hoje, para quem o filme, afinal, se endereça não tem justificativa na realidade).
Esse enfrentamento entre uma classe construtiva (a burguesa) e outra estagnada (a dos aristocratas) encontra na região da urze um lugar perfeito para se estabelecer. A aridez do solo encaminha o conflito e contrasta com a beleza extraordinária das paisagens. Um choque puxa outro e impede que o filme mergulhe nos abismos do “cinema de qualidade”.
É possível dizer que vez por outra a direção de Nikolaj Arcel pesa a mão e constrói um Kahlen até mesmo um tanto masoquista (numa simetria pouco desejável com Schinkel), mas no geral consegue transmitir seu ponto de vista: numa aventura, o resultado final importa muito, mas não é tudo: os valores que alguém consegue impor (e transmitir ao espectador) são, de certa forma, o objetivo final.
Embora aceitando as mil e uma intervenções do acaso (algumas felizes, outras, não) Kahlen evita que a vida se entregue à ausência de sentido (o caos).
Num mundo em que o dinheiro se torna cada vez mais o valor único e final (o mundo de hoje), uma voz discordante é algo a saudar.
O BASTARDO

  • Avaliação Muito bom
  • Quando Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Mads Mikkelsen, Amanda Collin, Simon Bennebjerg
  • Produção Alemanha, Dinamarca, Noruega
  • Direção Nikolaj Arcel

Fonte: FolhaPress