Cultura
Sexta-feira, 3 de maio de 2024

Com ‘Credores’, Tapa encena a misoginia de Strindberg sem dinheiro público

Em uma sauna, dois homens seminus conversam sobre a esposa de um deles. Além de escritora, ela é totalmente independente, fato inusitado para o final do século 19.
O casado é pintor e portador de uma doença que limita o movimento de suas pernas. Ele admite padecer de um vazio terrível quando sua mulher está longe. Enquanto isso, o homem mais velho tenta convencê-lo de sua superioridade em relação à mulher.
Além do matrimônio, eles refletem sobre a decadência da pintura frente à escultura, capaz de representar três dimensões -um diferencial se comparada à fotografia, recém-descoberta. Os corpos suados, envoltos em toalhas brancas, remetem à estatuária greco-romana, quase materializando a discussão.
O casado, então, mostra uma estátua de gelo que fez para representar sua amada. Está sem rosto.
Em determinado momento, Gustavo, interpretado por André Garolli, agarra Adolfo, papel de Bruno Barchesi, pelo colarinho e o obriga a tentar andar sem muletas. “Eu não consigo, sou apenas uma criança!” implora o mais jovem, antes de cair violentamente.
A segunda parte da peça “Credores”, em cartaz no Galpão Tapa, inicia com a chegada de Tecla, a esposa de Adolfo, ao hotel. Gustavo promete ajudar o amigo a desmascarar a mulher, após convencê-lo de que ela estaria se aproveitando do afeto para sugar seu talento artístico.
O que parece apenas um confronto entre marido e mulher torna-se uma discussão quase existencialista -e angustiantemente sem solução- sobre desejar e perceber o outro no mundo.
Não por acaso, os textos de August Strindberg, autor da peça, foram objeto de análise do filósofo Jean Paul-Sartre e chegaram a inspirar o cineasta Ingmar Bergman. Ao lado de Henrik Ibsen, Strindberg foi expoente do teatro escandinavo no final do século 19.
Filho de um pai rico e de uma governanta, as primeiras obras de Strindberg destrincham, com certa amargura, a impossibilidade de relação entre pessoas de classes econômicas diferentes. Após o fim de seu casamento, seus escritos assumiram um tom misógino -motivo pelo qual é, até hoje, considerado polêmico.
“Credores”, de 1888, está inserido no momento naturalista do dramaturgo. A montagem incentiva a crítica ao olhar masculino, que domina a primeira metade do espetáculo.
“A sauna é um espaço comum no mundo escandinavo. Aqui ela é purgatório da relação amorosa”, diz o diretor, Eduardo Tolentino. “É evidente que os personagens são misóginos. Mas quando os colocamos em cena, somos capazes de criar indignação quanto a isso”.
Em contraponto ao amargor de Adolfo, Tecla invade o palco com euforia. Ela não nega ao marido que gosta de flertar com outros homens mais jovens e, quando ele expõe sua frustração, ela se recusa a limitar suas experiências boêmias, o que cresce a tensão entre o casal.
Adolfo parece se apoiar na ideia de que criou Tecla, representada na estátua em cena. Ele também se coloca como motivo do sucesso da mulher por tê-la incentivado a escrever.
Quase como o Bentinho de Machado de Assis, quanto mais Adolfo deseja Tecla, mais se sente enganado. Para o psicanalista Christian Dunker, Adolfo e Gustavo representam o lado fraco e forte de uma mesma pessoa.
“São duas vozes que representam o jogo interno da consciência. É como se estivéssemos vendo nosso próprio funcionamento”, diz. A análise é realçada por dois espelhos, colocados frente a frente em lados opostos do palco.
Tecla, então, confronta o desejo de Adolfo, que esperava outro comportamento da amante moldada. O embate leva a uma trama estilo “O Médico e o Monstro”, entre momentos de paixão e raiva. “A chave não está em pensar que amor e ódio são feitos da mesma matéria-prima, mas no ponto de inversão entre os dois sentimentos”, conclui Dunker.
O grupo Tapa encena o texto de Strindberg há 12 anos. A nova versão é especial por celebrar os 44 anos da companhia teatral paulistana – que resiste em meio à crise financeira enfrentada pelo teatro independente na capital.
“Hoje o Tapa é estruturado em satélites. Não dá para se manter como companhia, não tem como pagar as pessoas para que fiquem”, diz Garolli. O financiamento é o principal entrave para estruturar uma companhia de teatro em sua forma original, com repertório próprio, onde artistas estudam e trabalham, segundo ele.
Para Tolentino, um dos fundadores do Tapa, o Brasil adotou um “modelo perverso” para o teatro. “Existem verbas públicas, mas elas são um falso fomento. Você fomenta uma coisa quando ela consegue andar com as próprias pernas”, diz.
O diretor argumenta que o teatro é muito dependente dos editais governamentais, como o Proac em São Paulo, que não tem verbas suficientes para a quantidade de projetos existentes.
No caso de “Credores”, uma porcentagem das vendas irá ao elenco e o resto será para pagar os custos de produção da peça. Além dos editais públicos e os valores de bilheteria, o Tapa se sustenta através de cursos e oficinas para a formação de atores.
O revezamento entre preços baixos e sessões gratuitas estaria impedindo o retorno financeiro de um público que poderia pagar pelo ingresso e, como consequência, minando a capacidade das companhias de viver da bilheteria.
“A gratuidade para bairros populares é uma coisa diferente. Além das sessões a preços populares, é preciso criar um mecanismo que leve as pessoas ao teatro, que precisa andar sem subsídio”, defende Tolentino.
Felipe Souza, o mais jovem a compor o elenco, estava trabalhando de garçom pouco antes de iniciar os ensaios para “Credores”. “Estou buscando outros trabalhos. Viver só de teatro é impossível”, lamenta.
A experiência ajudou a construir seu personagem, um camareiro que presencia a degradação do casal enquanto os serve. “O ser humano é digno de lástima”, constata, ao encerrar o enredo.
CREDORES
Quando Até 30/07. De quinta a sábado, às 20h. Domingo, às 18h
Onde Galpão Tapa. Rua Lopes Chaves, 86, Barra Funda
Preço Quinta e sexta R$50. Sábado e domingo a R$60
Classificação 14 anos
Autoria August Strindberg
Elenco André Garolli, Bruno Barchesi, Felipe Souza e Sandra Corveloni
Direção Eduardo Tolentino

Fonte: FolhaPress