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Quinta-feira, 25 de julho de 2024

Indústria imita rótulo para driblar veto a propaganda de fórmula, diz Idec

Na era das redes sociais, influenciadores digitais com milhões de seguidores têm sido vistos promovendo, de forma publicitária, fórmulas infantis (leites artificiais) das marcas Nestlé e Danone. Esses produtos divulgados apresentam embalagens que se assemelham às embalagens de produtos cuja propaganda é proibida. Esse assunto tem sido objeto de uma ação legal. As empresas afirmam que seguem a lei e apoiam o aleitamento materno.

Entenda o caso

Devido à proibição da publicidade de fórmulas infantis, a Nestlé e a Danone têm promovido produtos similares cuja divulgação é permitida: fórmulas destinadas a crianças a partir de um ano de idade e compostos lácteos, alimentos feitos com leite e outros ingredientes, como óleos vegetais.

No Brasil, a lei proíbe a publicidade de fórmulas infantis para crianças com menos de um ano. Acredita-se que esse tipo de propaganda desestimule o aleitamento materno, assim como a propaganda de chupetas e mamadeiras.

Em junho de 2022, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) apresentou uma ação civil pública contra a Nestlé, a Danone e a Mead Johnson (fabricante da fórmula Enfamil). A ação busca responsabilizar as empresas por práticas de promoção cruzada, que consiste em tornar os rótulos, cores e logotipos semelhantes para associar produtos diferentes. O foco da ação é a suposta propaganda indireta da fórmula para bebês com menos de um ano por meio do rótulo dos compostos lácteos.

Os rótulos e nomes desses produtos são muito parecidos. A fórmula da Nestlé para crianças de até um ano é chamada de Nan, enquanto para crianças a partir de um ano é chamada de Nanlac. O composto lácteo é chamado de Neslac. Na Danone, a fórmula para crianças de até um ano é o Aptamil, enquanto para crianças a partir de um ano é o Aptanutri. O composto lácteo é o Milnutri.

A Nestlé e a Danone afirmam, quando contatadas, que apoiam as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) em relação ao aleitamento materno e que estão em conformidade com a legislação brasileira. A Mead Johnson não respondeu ao contato do UOL.

Posição do Idec

A ação do Idec busca uma indenização conjunta de R$ 60 milhões por danos morais coletivos das empresas. Além disso, busca que a promoção cruzada desses produtos seja considerada ilegal. Em determinado momento, a Justiça chegou a ordenar que a Nestlé colocasse um adesivo nas embalagens do composto lácteo Neslac, informando que aquele produto não deveria ser confundido com a fórmula infantil. No entanto, a empresa conseguiu derrubar essa decisão.

O Idec afirma que a semelhança entre os rótulos e nomes faz com que a propaganda de um produto promova os outros e confunda o consumidor. É comum encontrar latas de fórmula para bebês ao lado dos produtos para crianças mais velhas nas prateleiras das farmácias.

Segundo o Idec, isso viola a proibição da publicidade de fórmulas infantis. A fórmula que não tem restrição de publicidade promove as outras fórmulas, assim como o composto lácteo, de acordo com Leonardo Pillon, advogado do Programa de Alimentação Saudável do Idec.

Um especialista da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) afirma que essa é uma maneira que a indústria encontrou para contornar a legislação. Tanto as fórmulas para crianças a partir de um ano quanto os compostos lácteos foram desenvolvidos após a regulamentação da lei sobre o assunto, segundo Fabíola Suano, presidente do Departamento Científico de Nutrologia da SBP.

“A criação desses produtos com o mesmo rótulo é uma forma de contornar a legislação. Esses produtos não existiam quando a lei foi regulamentada. Eles foram criados posteriormente. O fato de o rótulo ser igual é um grande indício de que é uma forma de contornar a legislação. Por que não criar um rótulo diferente?” questiona Fabíola Suano.

Sobre a ação em curso, a Nestlé afirmou que não comenta processos judiciais. A Danone declarou que a ação refere-se ao rótulo antigo.

Posição das empresas

A Nestlé afirmou que “suas fórmulas infantis, fórmulas de primeira infância e compostos lácteos seguem todas as exigências legais aplicáveis”. A empresa também mencionou que colabora com o governo, instituições públicas e a sociedade civil para implementar o Código da Organização Mundial da Saúde para a Comercialização de Substitutos do Leite Materno no Brasil.

Além disso, a Nestlé disse que os rótulos desses produtos estão em conformidade com a lei e apresentam indicação da faixa etária. Também ressaltou que, quando a amamentação não é possível, “recomenda que pais, mães e responsáveis consultem um profissional de saúde para obter orientações nutricionais individualizadas”.

A Danone afirmou que oferece duas linhas de fórmulas infantis e uma linha de composto lácteo, com marcas e rótulos diferentes, além de clara diferenciação de faixa etária nas embalagens. Também mencionou que, caso a amamentação não seja uma opção para os pais, eles fornecem “produtos seguros e com qualidade nutricional, desenvolvidos para atender às diferentes necessidades, sempre embasados nas evidências científicas mais confiáveis”.

A Danone destacou que a legislação permite a comunicação para a fórmula voltada para crianças a partir de um ano. Quanto à categoria de fórmula infantil da primeira infância (de 1 a 3 anos), “a legislação define o envolvimento permitido com o público em geral, incluindo comunicação e outras ações”, afirma a empresa.

Ações nas redes sociais

Nos últimos meses, esses produtos têm aparecido em diversas campanhas publicitárias realizadasnas redes sociais por influenciadores. Essas publicações promovem o Nanlac, fórmula infantil da Nestlé para crianças a partir de um ano, e o Aptanutri, produto semelhante da Danone.

Uma série de pais e mães famosos têm realizado essas propagandas. Em abril, a atriz Talita Younann (com 1,1 milhão de seguidores no Instagram) publicou fotos com sua filha e fez uma postagem promovendo o Nanlac. O casal formado pela cantora Marcella Fogaça (com 259 mil seguidores) e pelo ator Joaquim Lopes (com 1,7 milhão de seguidores) fez uma postagem semelhante no final de maio. No início de junho, o ator Bruno Gissoni (com 7,4 milhões de seguidores) e a atriz Yanna Lavigne (com 2,2 milhões de seguidores) também divulgaram que o pediatra recomendou o Nanlac para sua filha.

A apresentadora Rafa Brites (com 3,2 milhões de seguidores) publicou um texto em meados de maio promovendo a fórmula da Danone para crianças a partir de um ano. No final de junho, ela também divulgou uma promoção da marca com sorteio de prêmios.

O UOL entrou em contato com todos os influenciadores mencionados, mas nenhum deles respondeu às perguntas da reportagem.

O avanço das redes sociais tem dificultado a fiscalização do cumprimento da lei, de acordo com Rosana De Divitiis, cientista social e membro do conselho diretor da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN). Isso ocorre devido ao grande número de influenciadores e à falta de regras claras para o tema no ambiente digital. Há também casos em que a divulgação ocorre mesmo sem parcerias com as fabricantes.

Muitas vezes, as pessoas falam sobre as fórmulas mesmo sem serem patrocinadas pela indústria e, quando contatadas, afirmam que estão apenas dando sua opinião como pais, explica Rosana De Divitiis.

Alimento ultraprocessado

A recomendação da OMS é que o leite materno seja oferecido até os dois anos de idade ou mais, de forma exclusiva até os seis meses de vida. As fórmulas infantis são recomendadas apenas quando há impedimentos para a amamentação.

Não há indicação pediátrica para o uso de fórmulas infantis em crianças saudáveis a partir de um ano, afirma Fabíola Suano, da SBP. Nessa idade, a criança deve consumir alimentos sólidos e pode beber leite consumido pela família, duas a três vezes ao dia.

Os compostos lácteos são considerados “alimentos ultraprocessados que não têm indicação para lactentes” e podem transmitir a impressão inadequada de que são mais importantes do que a alimentação em si, diz a SBP.

Fonte: Uol