Cultura
Segunda-feira, 22 de julho de 2024

‘Meu Nome É Adam’ faz do estilhaço um estilo em livro sobre palestinos

Elias Khoury desconfia da literatura.
Aos 74 anos, ele é um dos maiores escritores libaneses vivos, talvez o maior. Sua escrita, porém, é marcada por essa suspeita incômoda. Não parece crer nem mesmo em seus próprios narradores.
A descrença, que marca também os livros anteriores de Khoury, é um dos pilares de “Meu Nome É Adam”. Esse romance árabe de 2018, publicado agora no Brasil pela editora Tabla, eviscera as limitações da literatura e de sua função social diante das grandes tragédias que assolam o mundo.
Primeiro volume da trilogia “Crianças do Gueto”, “Meu Nome É Adam” narra a expulsão e o massacre de palestinos da cidade de Lidd, como resultado da criação de Israel em 1948. Foi traduzido por Safa Jubran, que verteu ao português “Yalo” e “Porta do Sol”, também de Khoury.
Na introdução, Khoury diz que não é o verdadeiro autor do texto. O autor real, mente, é Adam, um imigrante palestino que vive em Nova York. Khoury conta a história -fictícia- de como recebeu o manuscrito depois do suicídio de Adam. Decidiu publicá-lo, desrespeitando seu desejo.
Esse desengano já é genial por si só. Mas Khoury vai ainda mais longe. Coloca críticas à sua própria obra no livro, creditando-as a Adam. O narrador imaginário escreve em parte como uma resposta a “Porta do Sol”, a obra-prima de Khoury, que menciona pelo nome em todo o romance.
Adam diz, ainda, que seu romance nem é de fato um romance -outro gesto genial de Khoury. Para Adam, o texto pertence a um gênero cujo nome ele desconhece, se é que existe. É ficção, história, confissão e crítica literária, tudo emaranhado em um volume só, em um grito polifônico.
Narrado em primeira pessoa, “Meu Nome É Adam” começa com a tentativa do narrador de escrever um livro sobre Waddah do Iêmen, um poeta real mas pouco conhecido do século 7.
Diz-se que Waddah era tão bonito que precisava esconder o rosto. Apaixonou-se pela mulher de um califa. Escondia-se dentro de um baú no quarto dela, para vê-la. Desconfiado, o califa mandou enterrar a caixa. Waddah não fez ruído nem tentou escapar; aceitou seu destino, calado.
Adam desiste de escrever essa história, porém. Decide, em vez disso, narrar sua própria vida. O leitor descobre, por fim, que o personagem nasceu na cidade palestina de Lidd, entre Tel Aviv e Jerusalém. Foi a primeira pessoa a nascer ali durante a ocupação israelense, daí o nome de Adão.
O narrador costura sua tragédia à de Lidd. A cidade era habitada por palestinos antes de 1948. Com a criação de Israel, seus moradores foram expulsos e massacrados. Não há consenso sobre o total de mortos, mas o historiador Árif Alárif -citado no livro- estima que são mais de 400.
Khoury empresta suas palavras ao autor fictício Adam para descrever não apenas a história de Lidd, mas também a de toda a Palestina. A criação de Israel e os subsequentes conflitos levaram à expulsão e fuga de mais de 700 mil palestinos, uma tragédia coletiva conhecida em árabe como Nakba, que significa “desgraça”.
Fica claro mais adiante no livro que a história de Waddah do Iêmen está conectada à de Lidd. O silêncio marca ambas. O horrível silêncio dos vítimas, como o da ovelha sacrificada. O mesmo silêncio do romance “Homens ao Sol”, de 1962, de Ghassan Kanafani, um clássico da literatura palestina que conta a morte de um grupo de refugiados escondidos dentro de um caminhão pipa, calados.
Como em seus livros anteriores, Khoury entrega uma narrativa fragmentada, como um espelho estilhaçado. Adam vai colando, fora de ordem, as desgraças vividas pelos moradores de Lidd, que incluem não apenas a morte, mas também a dolorosa perda da terra assim como da voz.
A fragmentação de sua narrativa, assim como o pessimismo, são marcas de uma literatura influenciada pela política. Críticos literários citam, entre os eventos que marcaram a ficção em árabe, a derrota na Guerra dos Seis Dias em 1967 e a guerra civil libanesa de 1975 a 1990. Khoury talvez seja o maior expoente dessa geração que fez do estilhaço seu estilo reconhecível.
Em um dos tantos momentos em que parece romper a quarta parede e acenar para o leitor, Khoury afirma -com a voz de Adam- que os palestinos esperam há décadas que alguém escreva o tão esperado grande romance sobre a Nakba. Tanto o autor quanto o narrador, porém, são céticos. Eles não parecem acreditar que a literatura possa curar as feridas abertas em 1948.
MEU NOME É ADAM
Avaliação Ótimo
Preço R$ 89 ( 384 págs.)
Autor Elias Khoury
Editora Tabla
Tradução Safra Jubran

Fonte: FolhaPress