Quem precisa de fantasmas quando a realidade já é amaldiçoada? “Com a primeira claridade da manhã, eu podia ver o rastro de sangue deixado no caminho”, narra Dona Justa, que, da morte, conta como as fissuras sociais são as grandes sobreviventes das histórias forjadas na violência que nos fundou.
Em “A Cabeça Cortada de Dona Justa”, as mandingas, as milongas, os bruxedos são força de permanência, não só de sobrevivência. É com eles que a narradora-fantasma se mantém no pós-vida, contando histórias, não deixando que se esqueçam de que o dono da terra não está ali por direito, mas pela força.
O resgate histórico feito pela autora, Rosa Amanda Strausz, dá força ao livro, que aposta na fantasia de forma competente para contar dos fantasmas que nos amedrontam como país.
A memória é peça central no relato de Dona Justa, que nos guia por sete gerações que enfrentam os feitiços de um grande e cobiçado pedaço de terra. É ela a herdeira, a proprietária por direito da sesmaria, como registrado no testamento do cirurgião-barbeiro francês que a recebeu de presente. Sesmarias eram lotes de terra distribuídos para o cultivo agrícola em nome do rei de Portugal.
No Brasil, o sistema de doações foi instituído quando o país foi dividido em capitanias hereditárias. A descrição está aqui simplificada, claro, mas já dá conta do contexto de posse de terra pelos nobres e do direito agrário estendido a alguns privilegiados perpetuado nesta sesmaria amaldiçoada que faz o Brasil colônia e o Brasil contemporâneo se encontrarem.
Quando morre o francês, o feitor ganancioso não deixa que Dona Justa, mulher preta liberta, fique com o terreno promissor. A tomada da sesmaria por Policarpo, homem cruel, joga sobre o solo fértil um ranço maldito. As violências a que são submetidos seus moradores explorados, pessoas negras escravizadas, também atraem os demônios, as sombras, as serpentes e até a chuva incessante que faz a área ganhar pecha de encantada.
Há no livro uma capacidade envolvente de reunir seres e histórias de mundos do meio, de espaços híbridos, ambivalentes, que refletem a falta de contorno de papéis e situações sociais que vêm com os personagens.
Dona Justa, por exemplo, é mulher com um pé na vida e outro na morte, mas que também é um ser de dois mundos porque vive um limbo racial e social -que, por sinal, a assombra bem mais do que qualquer ser mágico.
Em tons muito brasileiros, a ambiguidade, a mistura de crenças e religiosidades, a espiritualidade esfumada são o ponto alto de “A Cabeça Cortada de Dona Justa”. Assim como as personagens fantásticas que espetam a ordem vigente e desorganizam as expectativas. Se há imprecisão em estar viva e morta ao mesmo tempo, Dona Justa, por outro lado, está muito bem resolvida em seu posto desafiador e incômodo na comunidade. “Tudo que eu sabia é que era rezadeira numa terra comandada por padres. Já estava de bom tamanho.”
Não está tão preciso assim, no entanto, seu papel de narradora, que por vezes não convence. E por mais forte que seja sua fé, Dona Justa ainda cai em tentação: há momentos em que cede à vontade de explicar demais ao leitor, sem necessidade. Quando a história já se fez clara, a árvore genealógica já se desenhou, as gerações já se explicaram e o motivo de tanto desalento naquela terra já se evidenciou. As palavras continuam a ser entregues a quem lê, como a insistir no ligar de pontos já feito.
A “Cabeça Cortada de Dona Justa” é o retorno de Strausz aos livros adultos. Depois da estreia com contos premiados, em 1991, a autora fluminense passou a se dedicar à literatura infantojuvenil, na qual também explorou cisões sociais. Aqui, ao apostar no realismo fantástico, menos abraçado na literatura brasileira do que em outras partes da América Latina, mantém a fantasia, mas sem puerilidade. Pelo contrário, seus fantasmas não são para crianças. Dona Justa, personagem que carrega consigo tantos outros, é uma assombração com o formato dos horrores do Brasil.
‘A CABEÇA CORTADA DE DONA JUSTA’
Preço: R$ 59,90
Autor: Rosa Amanda Strausz
Editora: Rocco
Fonte: FolhaPress