Cultura
Sexta-feira, 19 de abril de 2024

‘O Tumor’ cria deserto distópico que pode servir de metáfora das eleições

Assanai está tão cansado que se esquece de desvestir a túnica quando se deita no tapete. Assim que acorda, o lugar-tenente do oásis descobre que a prenda grudou nele, fundindo pelo com pele.
O romance “O Tumor”, do escritor líbio Ibrahim al-Koni, já começa jogando areia nos olhos do leitor, dando sustos. É uma narrativa distópica que se passa num deserto fictício e fantástico, mas que poderia acontecer também em Washington ou em Brasília. O livro trata da natureza do poder.
Lançado em 2008, o texto chega ao Brasil pela Tabla com tradução de Mamede Jarouche, professor da Universidade de São Paulo conhecido por verter o “Livro das Mil e Uma Noites”. Koni, de 74 anos, é um dos principais autores vivos de língua árabe. Até agora, um nome ausente nas prateleiras brasileiras.
Em “O Tumor”, Koni conta que Assanai um dia recebeu um presente de um misterioso mensageiro -uma túnica. A vestimenta foi enviada por um líder supremo que ninguém jamais viu. Talvez um deus. Pela tradição, quem veste a túnica feita de peles ganha o direito de comandar o oásis no meio do deserto. Como explica o narrador, é um amuleto que transforma um venerador em venerado.
O leitor vai entendendo, ao avançar as páginas, por que a túnica se grudou no corpo de Assanai. “Quem ama algo mais do que se deve torna-se parte dele”, Koni explica no romance. A mensagem é clara -Assanai se agarrou demais ao poder, que por sua vez se agarrou à pele dele.
Mas vão surgindo as questões típicas da ciência política. Quem é esse líder que ninguém conhece? Por que ele distribui seu poder? O que faz respeitarem alguém por vestir uma túnica?
O livro tem aquela qualidade rara que transforma um contexto particular numa mensagem universal. Quem espera que, por ser líbio, Koni escreva sobre Muammar al-Gaddafi, ex-ditador daquele país, vai se perder nas dunas e se esfarelar. Koni trata de coisas absolutas que o leitor brasileiro pode identificar na campanha eleitoral deste ano, sem ter de olhar para o mapa-múndi.
Mesmo que a história de “O Tumor” possa ter acontecido em qualquer lugar, não é por acaso que o deserto está no centro da alegoria. É o espaço narrativo predileto de Koni, que cresceu na Líbia, imerso na cultura tuaregue -um povo berbere, seminômade, conhecido porque seus homens cobrem o rosto com véus em geral azuis. É um lugar, como escreve em “O Tumor”, cujo silêncio suspeito traduz todas as coisas ao nada -e traduz todas as expressões em metáforas.
Da mesma forma que o leitor não vai encontrar Gaddafi, tampouco vai achar referências ao islã, a fé associada à região. Koni escreve sobre um passado distante, amorfo, costurado com os retalhos de diversas tradições culturais.
O livro abre com citações do Alcorão e da Bíblia, mas nunca usa a palavra Deus -Allah, em árabe- nem menciona qualquer evento histórico. Aparecem gênios, criaturas mitológicas anteriores ao islã, e Wantahit, um ser da crença tuaregue associado às secas.
Koni constrói seu deserto particular, no romance, com uma língua bastante arcaica de que ele remove referentes islâmicos. O tradutor Jarouche fez um excelente trabalho reconstruindo o vocabulário em português com palavras esdrúxulas como “algarra”, “esbirro” e “algaravia”.
Para separar a língua da religião, Jarouche também evitou a tradução corrente da palavra árabe “rassul”. Em vez de “profeta”, que é hoje o sentido comum, adotou o termo literal “mensageiro”.
O romance é, em boa hora, uma porta de entrada para a ficção de um autor ainda inédito no país. Isso sem contar a excepcionalidade de se poder contar com uma voz literária da Líbia, por fim. A Tabla deve publicar no ano que vem o que talvez seja a obra-prima de Koni -“Al-Tibr”, ou o pó de ouro.
“O Tumor” não é sempre uma leitura fácil ou clara. Tem essa coisa das alegorias de exigir a decifração de metáforas, que nem todo o mundo busca em um romance. Mas é uma obra forte, viva. Algumas das imagens de Koni -como a ideia de que no deserto tudo tende à esfericidade, porque o vento corrói as bordas- ficam grudadas na pele do leitor, depois de ele fechar o livro.

O TUMOR
Avaliação: Muito bom
Preço: R$ 61 (192 págs.)
Autor: Ibrahim al-Koni
Editora: Tabla
Tradução: Mamede Jarouche

Fonte: FolhaPress/Diogo Bercito