Cultura
Sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Filme se volta para a cultura do cancelamento

O protagonista de “@Arthur.Rambo “” Ódio nas Redes”, que estreia agora, mal consegue segurar o sorriso nas primeiras cenas. Criado na periferia parisiense pela mãe, uma imigrante argelina, ele parece ter alcançado o auge do sucesso –tem seu romance de estreia elogiado em rede nacional, é convidado para assinar uma coluna no mais prestigioso programa literário da TV francesa, recebe um convite para adaptar e dirigir seu livro no cinema.
Até que uma torrente de mensagens de ódio invade a tela. “Férias em Auschwitz. Ainda restam lugares nos trens.” “As mulheres são iguais aos homens? Não!?” “Setenta e duas virgens para os terroristas: quem se candidata?”
São tuítes, de autoria dele mesmo –ou melhor, de seu alterego raivoso, a combinação de Rimbaud com metralhadoras que dá nome ao filme. E carimbam a jornada ao fundo do poço do personagem nas 48 horas seguintes, quando a sua promessa de um futuro brilhante se torna um cancelamento sumário.
Por alegórica que soe a trama, ela é baseada num episódio real, ocorrido cinco anos atrás com o influencer francês Mehdi Meklat. Visto como uma espécie de porta-voz das banlieues, as periferias parisienses hiperpopulosas, ele assumiu a autoria de uma série de tuítes racistas, misóginos, homofóbicos e antissemitas publicados sob um pseudônimo.
“Tinha lido algumas de suas crônicas, ouvia todo dia o seu programa na rádio. Quando soube dos tuítes, não conseguia fazer a conexão entre o cara que eu imaginava e aquele que eu tinha conhecido nas postagens”, diz o diretor do filme, Laurent Cantet, acrescentando que, apesar de ter informado Meklat sobre o projeto, o influenciador não se envolveu nele.
“Arthur Rambo” é, assim, a tentativa de Cantet –cineasta por trás de “Entre os Muros da Escola”, ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 2008 – de dividir com o público as mesmas perguntas que se fez na época do escândalo.
Cantet conta que estruturou a narrativa como um drama jurídico, em que a cada cena o protagonista busca justificar suas ações diante de um júri diferente –a editora, os amigos, a namorada, a mãe.
Não há, no entanto, uma resposta única capaz de explicar por que, afinal, aquele jovem promissor escreveu mensagens tão odientas, para ele ou para o espectador. “O filme traz muitas entradas diferentes. Você apanha um fio e o desenrola”, afirma o diretor.
O cineasta diz que uma explicação possível diz respeito à própria lógica das redes. O personagem quer ser popular a todo custo e descobre que para isso precisa ser cada vez mais provocador, mais violento. “As redes sociais simplificam nossa forma de pensar”, diz o diretor, ressaltando que o próprio formato dessas mídias, de textos curtos, para serem lidos e compartilhados rapidamente, exige isso. “Elas tomam tanto espaço na nossa vida, mas não pensamos na forma como as usamos.”
Uma outra resposta tem um viés mais político, acrescenta Cantet, e se relaciona com o lugar que esse jovem ocupa na França contemporânea.
Imigrante de segunda geração, o protagonista não quer seguir o caminho que seus pais encontraram para se integrar ao país, de obediência, passividade, aceitando uma existência “varrida para debaixo do tapete”, nas palavras do diretor. Ele tem raiva, e essa raiva “é uma condição para existir ali”, afirma Cantet.
É o mesmo ódio, diriam alguns, que levou a direita radical a se fortalecer entre os membros da classe trabalhadora da França nos últimos anos, a ponto de Marine Le Pen ter tido chances reais na eleição presidencial deste ano.
Mas essa visão não é compartilhada por Cantet. “Esses jovens não são responsáveis pelo que está acontecendo. São vítimas. É claro que a extrema direita usa isso. Mas acho que temos que provar para essas pessoas que elas são membros da nossa sociedade antes de pedir qualquer coisa delas.”

@ARTHUR.RAMBO – ÓDIO NAS REDES
Produção: França, 2021.
Direção: Laurent Cantet.
Com: Rabah Nait Oufella, Antoine Reinartz, Sofian Khammes.
Onde: Em cartaz nos cinemas.14 anos

Fonte: FolhaPress/Clara Alibi