Cultura
Quarta-feira, 3 de julho de 2024

Nova versão de ‘Café’ busca coletividade de Mário de Andrade no Municipal

Em uma manhã quente de um feriado de abril, dezenas de artistas, entre coristas do Coral Paulistano, dançarinos do Balé da Cidade, artistas circenses e atores convidados, se reuniram na cúpula do Theatro Municipal de São Paulo para mais um ensaio da ópera “Café”, idealizada por Mário de Andrade. Uma pequena multidão, que seria engrossada ainda, nos próximos dias, com a Orquestra Sinfônica Municipal.
Observado de fora, o ensaio passa muito rapidamente do caos de vozes para uma sintonia técnica impressionante. São, afinal, sistemas criativos altamente especializados, como o Coral, o Balé, a Orquestra. Porém, algo chama a atenção. A maior parte dos envolvidos não parece interessada apenas na perfeita execução de sua arte. Muitos ali também observam atentamente o conjunto, os sentidos do todo, o movimento geral do ensaio.
Nos momentos em que essa atenção se perde, em favor da pura execução técnica, o diretor cênico da ópera, e também responsável pela concepção do projeto de montagem, Sérgio de Carvalho, interrompe a cena. Ele vai em direção a uma dançarina e a orienta a olhar nos olhos de seu parceiro de cena enquanto executa seus movimentos. “O passo mais importante da interpretação é a adaptação ao outro”, ensina.
Pouco depois, pede para que os integrantes do coro, ao mesmo tempo em que se concentram na música, também reajam à ação da cena. “Vamos contar essa história e não só executar a nota”, diz.
Para Sérgio de Carvalho, “às vezes a pessoa está tão concentrada na técnica que ela se fecha numa cápsula do olhar. Ela não tem rosto, ela é um corpo sem rosto. Tentei incentivar uma atitude coletiva também no nível interno do trabalho”.
Esse traço não é somente uma característica de seu trabalho como diretor. A ideia de coletividade é o norte e o coração da ópera de Mário de Andrade, que já na década de 1940 imaginou um espetáculo que não apenas “interessasse coletivamente a uma sociedade, mas que tivesse uma forma, uma técnica mesma derivada do conceito de coletividade”.
Ele queria “em vez de solistas, coros, personagens corais, corais solistas”. O compositor da versão atual, Felipe Senna, notou a especificidade do material. “Mário de Andrade propõe passar a voz do indivíduo –na ópera, o solista– ao povo, ao coletivo”.
No libreto do modernista, a crise do café de 1929, que abre a ópera com a imagem estagnada de um “porto parado”, vai se transformando numa insurreição social, grande movimento coletivo, uma revolução em defesa da vida, contra os poucos donos dela. O coro torna-se o elemento forte do trabalho e é encarnado, nesta versão, pelo Coral Paulistano, fundado justamente por Mário de Andrade em 1936.
Sérgio de Carvalho tentou sublinhar essas proposições do modernista e fazer com que a ideia política de coletividade “chegasse também nas relações de trabalho da sala de ensaio”. É algo que tem orientado o trabalho do diretor há tempos, seja em sua trajetória de 25 anos como diretor e dramaturgo da Cia. do Latão em São Paulo, seja em trabalhos junto a movimentos sociais. Algumas semanas antes dos ensaios da ópera, por exemplo, ele dirigia uma versão politizada e contemporânea da Paixão de Cristo, no sertão do Ceará, com integrantes do assentamento Santana, do MST.
O aparente contraste entre os trabalhos no Theatro Municipal e no assentamento não é tão grande quanto parece. Ambos vivem e se alimentam de uma espécie de zona de fronteira entre linguagens artísticas. “Mário, quando pensou ‘Café’, pensou nessas fontes de teatro popular, teatralidades antigas, em que festa, dança e musica não se separam, que você um pouco participa e um pouco contempla. Não é o mundo da especialização, dos solos.”
É assim também no ambiente engajado do assentamento, cujo amadorismo permite exercícios experimentais de liberdade criativa e o desenvolvimento de uma cena comentada, festiva, participativa e, por isso, popular.
Para atualizar os sentidos da ópera, Sérgio de Carvalho propôs também outras camadas de crítica política. Com artistas convidados, como Negro Leo e Juçara Marçal, além de integrantes do coletivo de cultura do MST, ele busca criar “fissuras” no material original, abrindo espaço para perspectivas atuais de luta social coletiva, como a luta negra e a luta pela terra.
“Não teria sentido encenar o ‘Café’ hoje sem que a nossa cena indicasse a semelhança entre a farsa e a tragédia do tempo de Mário de Andrade e a do Brasil atual”, diz o diretor, sugerindo que o respeito pelo material exige também um alto grau de modificações, como uma atualizada sensibilidade social.
A versão atual da ópera, composta por Felipe Sena, tem ainda direção musical do maestro Luís Gustavo Petri, também maestro da montagem de 1996, dirigida por Fernando Peixoto e com música de Hans-Joachim Koellreutter. A curta temporada acontece nos dias 3, 4, 6, 7 e 8 de maio.

Fonte: FolhaPress/Paulo Bio