Cultura
Quarta-feira, 24 de julho de 2024

‘JFK Revisitado’, de Oliver Stone, é cansativo, mas muito necessário

Ninguém dirá que é agradável assistir a um filme que por mais ou menos um terço do tempo discute sobre o buraco aberto na cabeça de um homem, sobre os miolos desse homem atingidos por uma bala, sobre de onde veio a bala.
Mas talvez não exista assunto mais sério a discutir nos Estados Unidos dos últimos 60 anos ou quase: o assassinato de John Kennedy, presidente da República, atingido e morto em 1963. Para efeitos oficiais, o fato foi obra de um atirador solitário, Lee Oswald. Que pouco depois seria, por sua vez, assassinado por um certo Jack Ruby, quando estava sob custódia da polícia.
A chamada Comissão Warren, que investigou oficialmente os fatos, criou a versão oficial, que decretou que Oswald agiu sozinho, por livre e espontânea vontade. Assim também Ruby, que era dono de um night club. Tanta gente agindo sozinha debaixo do nariz da polícia parece não ter incomodado a maioria da comissão.
Mas havia pontas soltas aos montes, e Oliver Stone não se conformava com elas já há uns 30 anos atrás, em 1991 mais precisamente, quando lançou seu “JFK: A Pergunta que Não Quer Calar”.
Com o novo “JFK Revisitado – Através do Espelho”, que ganhou sessões on-line como um dos grandes destaques do 27º Festival É Tudo Verdade, ele volta ao tema e recorre ao puro documentário: perguntas, respostas, testemunhas, gráficos, além da repetição quase exaustiva do filme feito por um particular que documentou a morte de JFK.
A versão que chega ao público, com duração de duas horas, é uma adaptação daquela concebida para uma minissérie de quatro episódios.
Não é agradável de ver, nem muito menos divertido. Mas essa não é a questão adequada ao caso, e sim: qual a relevância de tanta investigação se o homem já está mesmo morto e não vai ressuscitar.
A segunda parte do filme é mais específica a esse respeito e trata de colocar em questão uma série de organismos que são a base da democracia americana, do “american way”.
Em outras palavras, para Oliver Stone e uma série de pessoas que estudaram exaustivamente os fatos, é perfeitamente possível que Kennedy tenha sido vítima de um complô interno, envolvendo sabe-se lá quem. Mas chefões da CIA, Allen Dulles à frente, e, claro, J. Edgar Hoover, o eterno mandachuva do FBI, estão entre os suspeitos principais.
Isso não leva muito longe. Porém Stone faz a pergunta mais incômoda em casos desse tipo: a quem interessa o crime? Nesse caso, o interessado imediato é Lyndon Johnson, ou LBJ, o vice que assumiu a presidência. Ainda assim, no entanto, sobram outras questões: se for isso, a que interesses responderia LBJ?
Bem, àqueles que a política de Kennedy incomodaria. Uma camada infiltrada nos principais órgãos de governo, sem nomes claramente definidos, mas com interesses aos montes. Eles se incomodariam sobretudo com a política externa de Kennedy, que, garante “JFK Revisitado”, pretendia tirar os militares estadunidenses do Vietnã, restabelecer relações saudáveis com Cuba e pôr fim às hostilidades com a URSS. Um programa e tanto.
Tudo isso enuncia uma questão específica dos EUA e que pode interessar aos EUA. Mas o que temos nós com isso? Se o assassinato de Kennedy ainda continua uma ferida (aberta ou não?) na história americana, qual o nosso interesse nisso?
Existe, sim. De certa forma, temos aí os EUA envolvidos numa sinistra ocultação de dados incômodos. E sabemos muito bem aquilo tudo o que eles deixam escapar quando essas coisas já não são problemáticas.
Fiquemos num caso apenas: a interferência estadunidense em uma série de golpes na América Latina, na segunda metade do século passado, inclusive no Brasil. Se estendermos o prazo, tais sombras se lançarão sobre inúmeros outros episódios marcantes, entre os quais está o ataque ao Iraque por participação suposta no 11 de Setembro, seguido por outra suposição –que a imprensa dos EUA engoliu com entusiasmo–, a de que o Iraque desenvolvia e fabricava armas químicas. Serviu para arrasar o país, mas armas químicas nunca apareceram.
E etc. Para resumir: a ideia geral de Stone é que o assassinato de Kennedy representou uma reviravolta radical no rumo que os EUA (e a humanidade) esperavam tomar. Foi uma vitória dos que queriam estender a Guerra no Vietnã (Stone acredita que Kennedy tiraria os seus soldados de lá) e, depois disso, continuam atribuindo aos EUA o papel de salvadores do mundo (ou a palavra talvez seja polícia).
Por trás da morte de Kennedy, Oliver Stone sugere, ao longo de seu bem tradicional e bem aplicado documentário, que existem muitos buracos mais em crânios, muitos outros miolos voando mundo afora em função da morte de Kennedy. Pode não ser divertido, mas não é algo a dispensar assim sem mais.

JFK REVISITADO: ATRAVÉS DO ESPELHO
Avaliação: Muito bom
Quando: 8 de abril, às 19h
Onde: É Tudo Verdade Play
Produção: EUA, 2021

Fonte: FolhaPress/Inacio Araujo