Cultura
Quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Livros virtuais vendem mais na pandemia, mas será que deixam a leitura superficial?

Se você abriu esta reportagem no celular ou no computador, é razoável supor que tenha o costume de ler em suportes virtuais. E, nesse caso, é provável que isso tenha aumentado durante a pandemia.
Em meio às diversas adaptações tecnológicas exigidas pela quarentena, foram vendidos 83% mais ebooks em 2020 do que em 2019, segundo a consultoria Nielsen. Em 2021, o mercado se estabilizou neste patamar mais alto e houve um aumento de 11% na receita dos livros digitais, segundo dados compilados para esta reportagem pelo Bookwire Brasil, empresa que monitora esse mercado.
“O número de lançamentos no ano passado quase triplicou se comparado com o total lançado em 2020, o que prova que as editoras também entenderam a relevância do livro digital para o mercado brasileiro”, afirma Isadora Cal, gerente da empresa.
A pesquisadora destaca ainda o surgimento de bibliotecas para obras digitais e o contínuo crescimento nos setores infantojuvenil e para jovens adultos, puxados por influenciadores do TikTok, fenômenos do boca a boca virtual.
Em resumo, ainda que sigam representando uma parcela modesta do mercado editorial –6% do bolo, segundo o último relatório geral da Nielsen, de 2020–, é seguro dizer que cada vez mais livros são lidos sem a mediação do papel. É saudável, então, pensar de forma mais ampla no que isso significa.
Afinal, ler um livro virtualmente é o mesmo que mergulhar num exemplar impresso? A resposta imediata é não –o que não quer dizer que a leitura em meios digitais deva ser demonizada, afirma a neurocientista Maryanne Wolf, professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora de “O Cérebro no Mundo Digital”.
“Todo meio tem vantagens e desvantagens”, afirma a pesquisadora, que participou de um seminário recente do Itaú Social sobre o tema. “Uma característica das telas é que seus olhos estão sempre em movimento, você vai rolando e rolando a página e se acostuma a processar muito rapidamente as informações.”
Estudos que analisam o movimento dos olhos diante do computador mostram que a leitura, em vez de percorrer um caminho reto de linha a linha, faz um percurso diagonal em busca de palavras-chave.
Como escreve a professora Naomi Baron, outra referência intelectual nesse campo, dispositivos digitais “nos estimulam a passar os olhos por cima em vez de ler em profundidade, a procurar informações em vez de percorrer uma prosa contínua”.
“Coisas se perdem nesse estilo de leitura”, aponta Wolf. “O texto impresso nos encoraja menos a folhear e mais a investir tempo no que chamamos de processos profundos de leitura. Pelas características físicas do livro e por toda a história que temos com esse suporte, a tradição nesse tipo de leitura é mergulhar mais fundo.”
Essa leitura profunda, acrescenta a neurocientista, é essencial para exercitar aspectos como empatia e pensamento crítico a partir da literatura. É mais difícil diminuir o ritmo para se concentrar em palavras e reflexões no computador, segundo ela, pela própria qualidade evanescente, transitória das telas.
Outro efeito é a perda de noção da integralidade da obra que se está lendo num dispositivo virtual. Para usar um exemplo corriqueiro, é normal que o visor do Kindle aponte uma porcentagem baixa de completude da leitura quando, por causa de apêndices como referências e posfácios, na verdade o livro já está bem próximo do final –não é possível alterar configurações para contornar isso, aliás.
Wolf, a neurocientista, se dedica em especial a pensar processos de aprendizado. Defende o que chama de uma sociedade duplamente letrada, na qual crianças aprendam que há conteúdos para ler no celular –um objeto que inevitavelmente faz parte de seu cotidiano– e outros que devem ser lidos em livro.
“É algo leve, uma leitura curta? Use seu e-reader. Mas, se é algo que você quer apreciar, um objeto de pesquisa, um contrato importante, você não quer se dar a chance de pular linhas.”
Giselly Lima, que é doutora em educação pela Universidade Federal da Bahia, aponta que o necessário é que todos os leitores “aprendam a transitar de uma forma de leitura para outra”. O conflito digital versus impresso, reitera ela, é falso.
“Se as crianças só usam a tela, elas se acostumam com esse modo de ler. Não é o digital que prejudica o desenvolvimento da leitura profunda, mas a ausência da experiência do impresso, que constrói um percurso cognitivo.”
Outro ponto a ser considerado na balança é a capacidade dos dispositivos digitais de ampliar o acesso à leitura, construindo leitores potenciais.
Foi de olho nisso que o empresário Rodrigo Meinberg fundou a plataforma Skeelo, um app que distribui livros direto em smartphones.
Os e-readers como Kindle e Kobo, segundo ele, atingem o mesmo público que sempre consumiu livros impressos. Ao disponibilizar literatura em um aplicativo que já está dentro do bolso, no celular, ele vê uma chance maior de converter leitores. Por isso, a empresa prioriza oferecer best-sellers, já de popularidade comprovada.
“Quando o mercado brasileiro se digitalizou, continuou falando só aos mesmos. Não aproveitou o digital para democratizar”, afirma Meinberg. “Dando o acesso, você pode criar o hábito da leitura. Se a pessoa não subir o primeiro degrau, não chega nunca ao segundo.”
A fala tem algum eco na argumentação de Maryanne Wolf. A neurocientista afirma que a leitura profunda não deve ser ensinada, idealmente, por meios digitais –exceto “quando não há outras fontes”. “Em lugares onde não há professores, onde as escolas são precárias, deve ser permitido ensinar alfabetização de qualquer maneira que pudermos. Que seja em um celular, em um laptop, onde for.”
Atribuir à existência desses dispositivos uma crise na qualidade de leitura também não é exatamente justo, segundo a pesquisadora Giselly Lima, que ressalta que ainda estamos no processo de construção de uma cultura letrada digital.
“A cultura contemporânea tira você da concentração para a leitura. Você ouve audiolivros dirigindo, por exemplo. Isso tem a ver com o digital, mas não com a leitura estritamente na tela, numa relação de causa e consequência. A falta de leitura profunda no Brasil não pode ser atribuída às telas. Até porque ela já não existia bem antes do smartphone.”

Fonte: FolhaPress/Walter Porto