“A Batalha do Lago Changjin” não é, em definitivo, um filme entre outros. Não só por ser uma das raras ocasiões que se tem de ver um episódio histórico por outras lentes que não as anglo-saxônicas, as de Hollywood em especial. Mas também, entre outras coisas, por proceder como uma espécie de espelho, em que todos os procedimentos clássicos do cinema de aventura -ou ação, conforme denominação mais recente- retornam em sentido contrário.
Estamos em 1950, quando a guerra esquenta e também as divergências a respeito. As fontes ocidentais -com apoio do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas- garantem que os comunistas invadiram a Coreia do Sul. Os chineses (no filme, em todo caso) falam em uma invasão da fronteira do norte pelas tropas dos Estados Unidos, lideradas pelo general MacArthur.
Até aí estamos no tipo de divergência básica de todas as guerras do mundo -a culpa sempre é do outro. O que vai marcar forma e fundo da “Batalha” são outros procedimentos. Para começar, estamos diante de um blockbuster. Não qualquer um, mas aquele que tirou do cinema americano a liderança de audiência na própria China no ano passado -em termos absolutos, foi a segunda maior bilheteria do mundo, ficando atrás apenas do US$ 1,6 bilhão de “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa”.
Ao longo de quase três horas, assistimos a esse épico com a impressão de estar diante de uma produção bem ocidental, que se preocupa em usar planos curtos, mudanças de ângulo constantes, efeitos especiais aos montes e filmagem com drones.
Resumindo, uma filmagem estilo Netflix. Não há grande preocupação com pessoalidade, ao contrário -seis diretores assinam a produção, alguns bem conhecidos do público ocidental. Os principais são Chen Kaige, Dante Lam e Tsui Hark.
Quanto ao roteiro, temos uma história, claro, de heroísmo e unidade nacional. O Exército chinês se move como um só homem, basicamente. Mas os heróis individuais estão presentes, sobretudo nas figuras dos irmãos Wu Qianli, papel de Jing Wu, e Wu Wanli, vivido por Jacson Yee. O primeiro, mais velho, já participou da guerra pela tomada do poder por Mao Tse-Tung; o segundo, ainda jovem, aspira a participar de jornadas heroicas, embora Qianli pretenda que ele deve ficar com os pais.
O jovem Wanli não acatará tal ordem, intrépido e um tanto aloprado que é (de início, ao menos). O personagem é construído sob inspiração do samurai de Toshiro Mifune em “Os Sete Samurais”, de Akira Kurosawa.
O importante, aqui, são duas notações destinadas a passar quase despercebidas. Primeiro, os irmãos, na família, são muito próximos uns dos outros e são três (um morreu na guerra passada) -clara referência à política recente de aumento de fertilidade nas famílias chinesas. Em segundo lugar, a principal preocupação dos filhos é a construção de uma casa para os pais -não há de ser por acaso que a indústria da construção civil tem para a China de hoje a importância que tem.
O fato é que esses soldados, capazes de quase chorar ao contemplarem a Muralha da China, enfrentarão com garra descomunal a força superior do Exército americano, cujo ponto fraco é a soberba, representada pela crença de MacArthur de que essa será uma guerra rapidinha.
Cinéfilos mais habituais sentirão as fragilidades do filme, como a repetição de procedimentos de que a indústria hollywoodiana já está cansada de usar (sem falar na de Hong Kong). Mas os espectadores chineses, aparentemente, estão pouco se lixando para isso. Na bilheteria chinesa, o filme deixou para trás “Velozes e Furiosos 9”, muito popular por lá, e que em 2021 amargou um terceiro lugar.
“A Batalha do Lago Changjin” -que promete uma continuação para este ano- parece ilustrar perfeitamente a política de cultura de massas da China contemporânea. Ela pode ceder ao Ocidente em vários aspectos, mas essa é uma maneira de chamar seus espectadores a valores locais -a família, a nação, a unidade, a crença nos valores do Partido. E ninguém imagine que Mao ficou para trás -lá está ele, figura tutelar, pensante, base sobre a qual se ergue o país atual.
De certa forma, “A Batalha do Lago Changjin” é um filme instrutivo, na medida em que informa a que ponto o cinema é capaz de organizar o mundo real de modo a que ele favorece os interesses e ideias oficiais, ou seja, sua ideologia.
Até hoje podíamos acreditar que “a verdade” das batalhas hollywoodianas eram apenas isso -a verdade. Agora emerge um contraponto, tão ideológico quanto, a deixar claro o quanto são relativas as visões que as imagens produzem.
Talvez exista um último recado a anotar nessa produção. Quando se dirigem ao confronto final, a mais de 30 graus negativos, os soldados chineses não têm como alimento senão uma batata congelada para cada um deles. Pois bem, é isso que basta para pôr as forças inimigas para correr.
Claro, a história lembra muito a dos vietcongues, que se nutriam de um punhado de arroz integral por dia durante a Guerra do Vietnã. Será verdadeira a história das batatas? No mais, consta que eram distribuídas aos espectadores na entrada das salas de cinema, antes das sessões do filme.
A rigor, que importa? É a capacidade de produzir mitos do cinema que parece interessar aos chineses deste século. É também uma maneira, pouco sutil, de lembrar aos americanos que, se eles usam o esforço bélico como modo de intimidar o adversário no conflito econômico que travam, a China está pronta a encarar o desafio.
Em vários sentidos este filme é instrutivo -em vários outros, um tanto assustador.
A BATALHA DO LAGO CHANGJIN
Avaliação: Regular
Produção: China, 2021
Direção: Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam
Fonte: FolhaPress/Inácio Araújo