Cultura
Quinta-feira, 28 de março de 2024

Livro subverte o clássico argentino ‘Martín Fierro’ com perspectiva feminista

Poucas coisas unem os argentinos mais que “Martín Fierro”, o texto fundacional da cultura local, escrito em 1872 por José Hernández. Crianças e adultos sabem recitar, de cor, trechos dessa obra, uma saga contada em versos, porque são memorizados na escola, onde é leitura obrigatória.
Em 13 capítulos, “Martín Fierro” narra a história de um “gaucho”, resiliente e corajoso habitante da região dos pampas. Os “gauchos” colaboraram nas lutas de independência e, depois, foram convocados para participar da “conquista do deserto”, uma campanha militar expansionista que tinha como objetivo levar a civilização aos confins do país e que causou também a morte de milhares de indígenas.
“As Aventuras da China Iron”, romance de Gabriela Cabezón Cámara lançado agora no Brasil pela Moinhos, revisita “Martín Fierro”, oferecendo um novo olhar à violenta história argentina do século 19. A escritora de 52 anos resolve dar voz a “la China”, como eram apelidadas, então, as mulheres que serviam aos seus maridos, cuidavam da casa e dos filhos.
A “China”, no caso, é uma menina de 14 anos cujo marido é arrastado para a guerra contra a sua vontade. É deixada sozinha num mundo que ela pouco conhece para além da pequena propriedade no campo em que viviam.
Se “Martín Fierro” foi construído com a ideia de exaltar o caráter rebelde dos “gauchos” e seu olhar particular sobre vida, morte, crueldade e sentimentos, “As Aventuras da China Iron” revisita esses mesmos temas, mas por meio da voz de uma jovem mulher silenciada pela literatura e pela história.
“Enquanto o Martín Fierro parte de casa dividido, em crise, triste, a ‘China’ fica para trás, abandonada. Mas para ela não é tão ruim a falta de um macho na casa. Na verdade, ela sente alívio, felicidade e curiosidade para conhecer o mundo. Como é muito jovem, sai por aí com os olhos de um recém-nascido, e esse foi o território para a criação do romance”, conta Cabezón Cámara.
A obra terá uma versão para o cinema, dirigida por Alejandro Fadel, em fase de preparação, que deve estrear no ano que vem.
A escritora, indicada por essa obra ao prêmio internacional Booker, afirma que a inspiração surgiu quando ela estava dando aulas na Universidade da Califórnia sobre a literatura gauchesca. Surgido na região do rio da Prata no fim do século 18, o gênero retrata a vida no campo, os embates políticos da formação do Estado argentino, e tem como personagens principais os “gauchos”, os indígenas, os negros, os fazendeiros e o Exército.
“É uma literatura masculina sobre um lugar regido pela lógica masculina, mas que, sem as mulheres, não existiria. Também é uma literatura que trata de muitas questões atuais, como a maneira como funciona a nossa economia, como se conquistaram e, hoje, se destroem os pampas e como são as relações amorosas e familiares”, diz ela.
“Pensei que seria interessante atravessar os mesmos temas da literatura gauchesca, e questionar a eleição do ‘gaucho’, seus valores, seu caráter rebelde que os brancos queriam dominar ou mesmo eliminar, como fundador da nossa identidade nacional”, acrescenta.
Essa abordagem permitiu que Cabezón Cámara lançasse um debate sobre a identidade nacional construída por essas obras. Em “As Aventuras da China Iron”, aparece uma Argentina mais heterogênea, que questiona o modo como se realizou a ocupação econômica e cultural do território.
“A ideia de chamar o que havia ao sul de Buenos Aires de deserto era absurda e mentirosa. Acabou gerando o processo de extermínio dos nossos povos originários. Hoje se sabe disso, mas, ainda assim, a ideia de ‘deserto’ predomina no imaginário dos argentinos. A ideia de que não havia nada aqui antes da chegada dos colonizadores”, afirma a escritora.
“Pensamos que somos um país sem indígenas, sem negros, sem mistura. Tanto que temos um presidente que reafirma publicamente que ‘os argentinos vieram dos barcos'”, afirma a escritora, em referência ao que Alberto Fernández disse ao primeiro-ministro espanhol numa visita do último à Argentina em junho deste ano. A frase ignora a miscigenação da qual o país hoje é resultado.
No texto, a natureza é um personagem essencial, e a região dos pampas é descrita em detalhes. “Queria chamar a atenção também para o fato de que estamos destruindo os pampas com o avanço da exploração agrícola, das plantações de soja. Estamos desertificando a região, que hoje tem secas que antes não tinha, as águas estão contaminadas e aldeias indígenas foram abandonadas porque os seus habitantes não têm água ou comida para viver e devem migrar.”
Cabezón Cámara é ativista feminista e trabalhou como editora de cultura do jornal Clarín até decidir se dedicar só à literatura. Também dá aulas de escrita criativa na Universidade Nacional das Artes, em Buenos Aires.

AS AVENTURAS DE CHINA IRON
Preço: R$ 60 (176 págs.); R$ 41,99 (ebook)
Autora: Gabriela Cabezón Cámara
Editora: Moinhos
Tradução: Silvia Massimini Felix

Fonte: FolhaPress/Sylvia Colombo