“Na literatura há mais cachorros do que bebês, e também mais abortos.” Essa é uma das reflexões expressas por uma escritora que se tornou mãe recentemente em “Pequenas Resistências”.
O primeiro livro a sair no Brasil da canadense Rivka Galchen reúne pequenos capítulos, às vezes compostos só de uma ou duas frases, com registros de pensamentos sobre arte e literatura, considerações sobre a maternidade, histórias engraçadas de perrengues burocráticos e colocações espirituosas sobre os descolados de Nova York.
Professora de escrita da Universidade Columbia, colaboradora de revistas como a New Yorker e médica com formação em psiquiatria, Galchen conta em entrevista por vídeo de sua casa em Nova York que se inspirou num livro japonês de mais de mil anos e em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” para encontrar o formato que o livro teria.
Escrito entre os séculos 10º e 11, “O Livro do Travesseiro” recolhe listas, observações e opiniões de uma dama da corte japonesa. Galchen diz que se interessou por ele após ler um trecho numa antologia e que se surpreendeu com o volume escrito por uma mulher há tanto tempo que tem grande importância histórica.
“É um livro como os de [Fernando] Pessoa, que você deixa ao lado da cama e lê um trecho, em qualquer ordem, ao longo de anos.” Junto do poeta português e do clássico oriental, Galchen lista ainda os curtos capítulos de Machado de Assis, num dos livros que ela considera importantes em sua vida. Além das referências literárias, o desnorteamento temporal dos primeiros meses de maternidade estão representados na maneira como as pequenas e grandes bolhas de pensamento vão aparecendo ao longo de “Pequenas Resistências”.
“O primeiro rascunho era apenas um único longo parágrafo, à la Thomas Bernhard [escritor austríaco], mas não funcionou, algo ali parecia impreciso, e então virou esses pedaços, que é mais próximo a como as ideias apareceram”, diz. “Tem a ver com o fato de ser mãe, porque, na maioria das mulheres, as percepções ficam desorientadas por causa das horas acordadas e do pouco sono e das horas em que passamos sozinhas. É tão diferente.”
Sua filha povoa quase todas as entradas do volume, chamada de bebê puma, animal que reflete qualidades como beleza e poder e que tem uma presença marcante e silenciosa. “Tem havido tão pouca representação de bebês na arte porque faltam mulheres. São poucas as mulheres escritoras nos últimos cem anos”, diz ela sobre um dos principais temas que aparecem no livro.
“As mulheres que conseguiram pintar com frequência representam crianças e bebês, e é chocante ver como eles aparecem de maneira realista se comparados ao menino Jesus, comum em pinturas e que é sempre como um pequeno adulto com uma cabeça pequena.”
Segundo ela, é preciso prestar atenção em algo para que vire tema de arte e bebês estavam fora do radar antes do século 20. “Os bebês são assim, se você não prestar atenção neles. Eles não falam, não são tão fofos quanto as crianças, não se mexem e não demandam atenção de mais ninguém a não ser da família.”
Segundo ela diz no livro, porém, entre as mães escritoras atuais, “duas das mais celebradas são homens”, Karl Ove Knausgard, o norueguês da série “Minha Luta”, e o comediante americano Louis C. K.. Galchen diz que isso se dá porque ainda é extraordinário um homem que assuma não só a paternidade, mas o papel de principal responsável pelos filhos, função normalmente associada às mulheres. “Talvez esses casos pareçam tão importantes porque estamos cegos para mulheres com bebês, mas não estamos cegos para homens com bebês.”
Há, porém, uma onda de escritoras escrevendo sobre a maternidade, mas as histórias que têm ganhado mais holofotes têm sido aquelas que abordam os aspectos até então menos explorados do tema e sobre os quais ainda é difícil falar, como a depressão pós-parto, o arrependimento e outras questões mais baixo-astral. O livro de Galchen, ao contrário, é uma exaltação da maternidade e emana felicidade em muitas de suas linhas.
Ela diz que entende que muitas pessoas prefiram não dizer o quão maravilhoso é ter filhos por receio de magoar ou parecer estar julgando as mulheres que querem ter filhos e não conseguem ou aquelas que não querem ser mães.
“Aqui nos Estados Unidos, entre mulheres trabalhadoras e envolvidas com cultura e com a vida intelectual, porém, a coisa mais aceitável é falar sobre como ser mãe é chato e solitário. Isso é verdade, ou pode ser verdade. Para mim, então, o tabu era achar ser mãe enriquecedor, porque na minha bolha isso é novo, é o que ninguém me contou antes, que me tornar mãe seria a felicidade. Esse era o segredo”, diz.
É nesse ponto da conversa que Galchen revela ser fã de outra personalidade brasileira, Clarice Lispector. Ela conta que leu recentemente a biografia da escritora e que percebeu não haver nos Estados Unidos uma figura como Clarice, “glamorosa, fortemente intelectual, extremamente emocional e que era muito envolvida com os filhos”, diz.
“Ela é um exemplo, um raro exemplo. Aqui, e talvez em todo o Ocidente, tem essa coisa de se pôr como uma intelectual masculinizada”, diz, o que talvez explique a necessidade de alguns grupos sociais de desdenharem da maternidade.
Ser mãe também fez com que Galchen despertasse para a desigualdade de gênero, processo que ela descreve no livro ter começado um pouco antes, quando ela percebeu que suas estantes só tinham títulos escritos por homens. “Eu mudei!”, diz ela.
E essa mudança foi “100% necessária”, segundo ela, para seu mais recente romance, “Everyone Knows Your Mother Is a Witch”, ou todos sabem que sua mãe é uma bruxa, que acaba de sair em inglês, ainda não tem data para chegar ao Brasil e vem sendo elogiado pela crítica. O livro ficcionaliza de forma bem-humorada a história real da mãe do astrônomo e matemático alemão Johannes Kepler, Katharina, uma viúva iletrada que trabalhava com ervas medicinais e é acusada de bruxaria.
“Cresci numa casa em que homens eram venerados, e muitas das coisas que gostava em mim eram coisas que não deveriam ser generificadas mas são, como matemática e ciências, e eram as coisas das quais eu me orgulhava”, diz ela.
“Mas quando estava grávida e descobri que era uma menina, eu me lembro de estar andando na rua e ver um desses grandes outdoors com uma mulher jovem numa banheira de espuma e me perguntei ‘mas do que raios isso está fazendo propaganda?'”, conta. “Eu estava brava.”
“Nunca tinha sentido raiva por mim ou por outras mulheres, mas descobri que estava esperando uma menina e de repente fiquei com raiva porque imaginava ela sendo influenciada por essas imagens e ideias extremamente generificadas, em que as mulheres são como bens de luxo, como uma bolsa, ou relógio, ou carro”, diz.
Foi então que ela passou a olhar o mundo como, diz, deveria ter sempre olhado, da “maneira como ele afeta meninas jovens”.
PEQUENAS RESISTÊNCIAS
Preço: R$ 49,90 (140 págs.)
Editora: DBA
Autora: Rivka Galchen
Tradutora: Taís Cardoso
Fonte: FolhaPress/Ursula Passos