Pelas estatísticas oficiais, após quatro anos consecutivos de aumento, o número de brasileiros vivendo em Portugal atingiu seu recorde absoluto em 2020, com 183.993 residentes. Um valor que já é expressivo –representa quase 28% de todos os estrangeiros no país–, mas ainda está bastante sub-representado.
Isso acontece porque os dados oficiais do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) não contabilizam como brasileiros aqueles que têm dupla cidadania portuguesa ou de outro dos 26 países da União Europeia. Também não entra na conta quem está em situação migratória irregular.
Segundo o Itamaraty, as repartições consulares trabalham com uma estimativa de que a comunidade brasileira em Portugal tenha cerca de 300 mil pessoas. Ou seja: 63% maior do que as estatísticas indicam.
Associações de apoio à comunidade imigrante, no entanto, estimam que esse número possa ser ainda maior, chegando ao dobro do oficial.
“Trezentos mil é o mínimo. Se pensarmos em todas as pessoas que estão à espera das entrevistas das manifestações de interesse [primeira etapa de regularização para quem não entrou com o visto adequado], além do pessoal que não conseguiu dar entrada no processo ainda, mais todas que já adquiriram a nacionalidade, vemos como a comunidade é bem maior”, avalia Cyntia de Paula, presidente da Casa do Brasil em Lisboa.
Segundo ela, nos últimos anos, o perfil dos brasileiros que optam por morar no país é cada vez mais diversificado: desde estudantes e empresários até profissionais com menos instrução.
À frente da consultoria Lisboa à Beça, que auxilia brasileiros na mudança e na compra de imóveis em Portugal, os cariocas Flávia Motta e Leonardo Mesquita, que têm dupla cidadania portuguesa, fazem parte deste “grupo invisível” das estatísticas.
“Na prática do dia a dia não faz nenhuma diferença ter a cidadania, porque a gente abre a boca e já é percebido como brasileiro. É mesmo uma facilitação burocrática, porque a gente não passa por uma série de questões e desafios de quem precisa lidar com autorizações de residência”, avalia a empresária.
Neta de portugueses, ela chegou ao país com a dupla nacionalidade e, por isso, jamais foi detectada pela contagem oficial de brasileiros. Já Leonardo chegou a figurar nas estatísticas por um breve período, enquanto sua naturalização não saía.
“Dos nossos clientes, uns 70% têm cidadania portuguesa ou europeia, então já chegam também sem contar como brasileiros aqui”, completa Leonardo.
Desde 2006, Portugal tem promovido uma série de mudanças que facilitam o acesso à cidadania do país. Entre elas estão a concessão da nacionalidade a netos de portugueses e a redução do tempo de residência para a naturalização, que agora é de cinco anos.
Embora a obtenção da cidadania não necessariamente signifique viver em Portugal, os números mostram ainda um interesse crescente dos brasileiros pelo passaporte lusitano. Segundo dados do Ministério da Justiça, entre 2010 e o começo de 2018, mais de 220 mil brasileiros obtiveram a dupla nacionalidade.
De acordo com um relatório da Eurostat (agência de estatísticas da União Europeia), Portugal tinha em 2019 a terceira maior taxa anual de naturalização –número de naturalizações por cada 100 estrangeiros regularizados– entre os Estados do bloco: 4,4%.
A Suécia (6,9%) e a Romênia (4,7%) lideram a lista.
As autoridades também chamam a atenção para o número de cidadãos brasileiros com o passaporte italiano em Portugal.
Segundo um relatório do SEF de 2019, cerca de 29,5% dos residentes italianos eram naturais do Brasil.
A advogada carioca Roberta Dupin, 32, é uma das que entram para as estatísticas como italiana. Em Portugal desde 2017, ela veio para um mestrado e acabou decidindo morar de vez no país.
“Não sei se ter a nacionalidade europeia foi decisivo para eu morar aqui, mas facilitou muito. Para o mestrado eu não precisei me preocupar com o visto, e nem depois quando comecei a trabalhar”, diz.
Ela conta gostar muito de viver em Portugal, mas afirma que a mudança também teve algumas dificuldades, sobretudo no aspecto profissional.
“Quando a gente sai dos grandes centros do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro, tem muitas expectativas de carreira. Aqui a realidade é outra, há uma transição para um mercado bastante diferente. Para algumas pessoas, pode ser frustrante.”
A questão da inserção profissional é justamente uma das principais críticas entre os brasileiros em Portugal. O tema é motivo de queixas entre os regularizados ou com cidadania europeia, mas ganha contornos ainda mais graves para quem está à espera das autorizações de residência.
Publicitária com especialização em marketing digital, a catarinense Luiza Mendes está há mais de dois anos à espera do processo de regularização. Enquanto o documento não sai, ela diz se sentir vulnerável à exploração no mercado de trabalho.
“Felizmente, estou numa empresa ótima agora, mas sofri bastante. Sinto que ainda há uma discriminação forte com quem se formou no Brasil e teve experiências no mercado brasileiro. É como se o valor das nossas experiências fosse menor”, afirma.
Ao contrário de vários países europeus, Portugal tem um sistema relativamente simples para a regularização de pessoas que tenham entrado no país como turistas, mas permanecido para viver e trabalhar sem o visto adequado.
A grande quantidade de pedidos, no entanto, faz com que as pessoas permaneçam durante muito tempo aguardando a análise de seus casos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Nesse período, seguem pagando todos os impostos e contribuições à Segurança Social, mesmo com possibilidades mais restritivas para usufruir dos benefícios.
Embora casos de deportação sejam raros, viver em Portugal sem a documentação apropriada significa, muitas vezes, estar em maior situação de vulnerabilidade social e trabalhista e ter a liberdade de movimentação bastante restringida.
Por conta da pandemia, Portugal decidiu regularizar temporariamente todos os estrangeiros que estavam com pedidos de legalização pendentes no SEF. O objetivo era garantir o acesso dos imigrantes ao sistema de saúde e à vacina contra a Covid-19.
Cerca de 223 mil estrangeiros já foram beneficiados, o que já ajuda a perceber o potencial tamanho da comunidade imigrante indocumentada. Os dados por país ainda não foram divulgados, mas os brasileiros foram a nacionalidade mais impactada.
A pandemia debilitou ainda mais o já moroso sistema de regularização junto ao SEF, que chegou a interromper por mais de um mês os atendimentos e entrevistas devido à deterioração da situação epidemiológica em Portugal.
Embora o órgão tenha digitalizado vários processos e instituído a renovação das autorizações de residência direto pela internet, as novidades não conseguem dar conta do aumento da demanda.
Neste momento, o sistema de agendamento junto ao SEF está interrompido por falta de vagas em todo o país. Além da morosidade, os imigrantes também se queixam da captura de vagas por advogados e despachantes que se especializaram na revenda das marcações.
Para denunciar a situação, imigrantes chegaram a realizar uma manifestação no centro de Lisboa, em julho, marchando pelas ruas até chegarem ao Parlamento.
Como a entrada de turistas brasileiros está vedada em Portugal desde março de 2020 –só estão autorizadas viagens classificadas como essenciais, para quem tem cidadania ou residência legal, além de algumas poucas exceções–, a demanda sobre o órgão migratório ainda é causada pelo período pré-pandemia.
“Aposto que, quando Portugal reabrir para os turistas, teremos uma enorme chegada represada. As pessoas continuam com muita vontade de se mudar para cá, especialmente por conta da grave situação brasileira. Todos os dias nós recebemos emails e contatos de gente perguntando sobre a reabertura”, diz Cyntia de Paula, da Casa do Brasil.
Na avaliação de Cyntia –ela própria excluída da contagem de imigrantes por já ter a cidadania lusa–, os dados subdimensionados sobre o tamanho da comunidade podem ter consequências em termos de políticas públicas, que seriam formuladas sem considerar o tamanho real das questões envolvendo brasileiros.
“Os brasileiros têm problemas muito parecidos com o resto da população residente, mas também vivenciamos coisas muito específicas”, diz ela. “Há os preconceitos, as piadas, a discriminação linguística. Se os políticos acharem que a comunidade é muito menor do que o tamanho real, podem não se sentir encorajados a enfrentarem essas questões.”
HISTÓRICO
Os laços históricos e culturais e a língua em comum fazem com que Portugal e Brasil tenham um intercâmbio frequente de pessoas. Costuma-se dividir as migrações brasileiras para o país europeu em quatro ondas.
A primeira, na década de 1980 e meados de 1990, tinha como destaque profissionais liberais, com muitos publicitários e dentistas.
A segunda, bem mais numerosa, aconteceu no início dos anos 2000 e incluiu muitos profissionais menos especializados. O período coincide com o endurecimento de medidas para a entrada nos EUA.
A terceira onda, ainda mais forte, é de meados da década de 2000, com ênfase de trabalhadores e o começo da chegada regular de estudantes. A grave crise econômica enfrentada pelo país, que precisou pedir resgate internacional em 2011, aumentou o desemprego e diminuiu a atratividade para os brasileiros. Com o Brasil em um bom momento econômico, muitos imigrantes também acabaram retornando.
A partir de 2015, o cenário se inverteu. Com o Brasil em um cenário de deterioração política e econômica, e Portugal em franco reaquecimento, o país voltou a registrar aumento da população brasileira.
Alterações na lei de acesso ao Ensino Superior facilitaram a entrada de estudantes estrangeiros nas universidades portuguesas, que passaram a ver no mercado brasileiro um enorme potencial.
Desde 2014, é possível inclusive usar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) como forma de ingresso. Atualmente, cerca de 50 instituições lusas aceitam a prova brasileira.
Além dos estudantes, a onda migratória mais recente conta com muitos profissionais liberais que vieram em busca de segurança e mais qualidade de vida.
Quarto país mais seguro do mundo, de acordo com a última edição do Global Peace Index, Portugal costuma destacar a segurança como um de seus atrativos para novos moradores.
Com uma população envelhecida e uma das taxas de natalidade mais baixas da Europa, o país tem na imigração um importante fator para reduzir o impacto do declínio populacional.
Embora nunca tenha havido tantos estrangeiros como agora, o fluxo não foi suficiente para evitar o declínio populacional de 2% na década, de acordo com os recém-divulgado censo de 2021.
Fonte: FolhaPress/Guiliana Miranda