Internacional
Sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Jornal alvo de repressão da China em Hong Kong deixa de circular

LUCAS ALONSO

Depois de um ano pressionado pela nova lei de segurança nacional imposta a Hong Kong pela China, um dos mais importantes jornais pró-democracia do território publicou nesta quinta-feira (24, quarta no Brasil) a sua última edição impressa e anunciou que não vai mais atualizar a versão online.
Para a despedida, o Apple Daily imprimiu 1 milhão de cópias (mais de dez vezes a tiragem normal) e levou à capa a foto de um funcionário acenando a apoiadores e a manchete “Sob chuva, honcongueses se despedem tristemente”.
A imagem foi feita quando centenas de pessoas se reuniram diante do prédio do jornal depois do anúncio de que ele seria fechado e demonstraram seu apoio acendendo as luzes dos telefones celulares.
“Obrigado a todos os leitores, assinantes, anunciantes e honcongueses por 26 anos de imenso amor e apoio. Aqui nos despedimos, se cuidem”, diz o texto publicado no site.
Segundo a Next Digital, empresa proprietária do tabloide, a decisão de fechar foi tomada em nome da segurança dos funcionários “devido às atuais circunstâncias que prevalecem em Hong Kong”.
Na semana passada, mais de 500 agentes invadiram a Redação durante operação sob pretexto de investigar supostas violações da controversa lei de segurança nacional vigente na ex-colônia britânica.
Executivos foram presos sob acusação de conspiração, e os ativos do jornal foram congelados –movimento considerado tentativa de estrangulamento financeiro.
Em duas ocasiões nas quais foi alvo de operações policiais, o jornal aumentou sua tiragem de 80 mil para 500 mil exemplares, e as pessoas fizeram filas nas bancas para comprar as edições em protesto contra a repressão.
Em outra publicação nesta quarta, o jornal listou algumas de suas grandes coberturas jornalísticas ao longo das quase três décadas de trabalho, como a devolução de Hong Kong à China em 1997, a epidemia de Sars em 2003 e os protestos nas ruas da cidade que chamaram a atenção do mundo todo em 2019.
“Apesar do final insatisfatório, a despeito de toda a perseverança, a determinação de permanecer ao lado do povo de Hong Kong nunca mudou em 26 anos. Obrigado a todos os leitores que defendem o Apple e a todos os amigos que esperaram a entrega do jornal tarde da noite nas bancas. Este capítulo final foi escrito pelos leitores e por nós e, ainda que o lamentemos, nós estamos gratos”, diz o texto.
O artigo ainda questiona que tipo de cidade Hong Kong será se não pode tolerar o Apple Daily, ecoando as reações de lideranças e entidades internacionais que veem no fechamento do jornal e nos acontecimentos que levaram ao fim de suas atividades os mais recentes episódios de ataque à liberdade de imprensa na China.
O fechamento do jornal representa o desaparecimento de uma das poucas publicações locais que ousam criticar as autoridades chinesas, embora às vezes seu conteúdo, que mistura o discurso pró-democracia e as investigações jornalísticas sobre as figuras de poder na cidade à cobertura da vida de celebridades, tenha sido visto como espalhafatoso por seus críticos.
Para Yamini Mishra, diretora regional para Ásia e Pacífico da Anistia Internacional, o fechamento forçado do Apple Daily é o dia mais tenebroso para a liberdade da mídia na história recente de Hong Kong. Em sua avaliação, as prisões, apreensões e congelamentos de bens “vão causar um arrepio na espinha” dos meios de comunicação na cidade.
O chefe da Associação de Jornalistas de Hong Kong, Ronson Chan, disse que já se sente com medo de ser preso por conta do que escreve, e que, a partir do fechamento do Apple Daily, teme que toda a sociedade se sinta da mesma forma. “Instamos o governo a cumprir a promessa de salvaguardar a liberdade de imprensa e de permitir que as pessoas que trabalham na indústria de notícias sirvam a Hong Kong sem medo”, disse.
Dominic Raab, secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, falou em “golpe terrível para a liberdade de expressão” na ex-colônia britânica. Para ele, o fechamento deixa claro que a lei de segurança nacional está sendo usada para “restringir liberdades e punir dissidentes, em vez de manter a ordem pública”.
O fim das atividades do Apple Daily também representa uma vitória para as autoridades de Hong Kong aliadas ao regime central, que não escondiam o desejo de silenciar o veículo. Na terça (22), a chefe-executiva de Hong Kong, Carrie Lam, reagiu às críticas internacionais contra a repressão ao Apple Daily, classificando-as de equivocadas.
“Não tentem embelezar esses atos que ameaçam a segurança nacional. E não tentem acusar as autoridades de Hong Kong de usar a lei de segurança nacional como uma ferramenta para suprimir a mídia ou para sufocar a liberdade de expressão”, disse .
Dois jornais concorrentes do Apple Daily e de conteúdo alinhado à China, o Wen Wei Po e o Ta Kung Pao, publicaram páginas especiais nesta quarta-feira, retratando o magnata da mídia Jimmy Lai, 73, dono do Apple Daily e ferrenho crítico de Pequim, como um “animal parecido com um cachorro”, um “traidor” e um engraxate que obedece às ordens dos Estados Unidos. Apoiadores do regime central celebraram o anúncio do fechamento portando cartazes em que se lia “fake news” e tomando champanhe em frente à sede do Apple Daily.
A operação policial e o fechamento do jornal foram os mais recentes reveses para Lai, que também teve seus bens congelados com base na lei de segurança nacional e, atualmente, cumpre pena de prisão por participar de manifestações contra o regime chinês consideradas ilegais. Lai está detido desde dezembro e teve seu pedido de fiança negado pela Justiça.
Na semana passada, durante a invasão da Redação do Apple Daily, cinco executivos do jornal foram presos, e dezenas de computadores e telefones usados pelos repórteres foram apreendidos. A polícia também determinou o congelamento de 18 milhões de dólares honcongueses (R$ 11,7 milhões). Segundo o secretário de segurança de Hong Kong, a Redação era uma “cena de crime” e suas reportagens eram “ferramentas para colocar em perigo” a segurança nacional.
A saída de cena do Apple Daily não apenas sufoca as liberdades de imprensa e expressão na ilha, como também estabelece um precedente nada bom para os poucos jornais que ainda operam sem ligação com o governo chinês.

Fonte: FolhaPress