INÁCIO ARAUJO –
Kelly Reichardt é uma cineasta da persistência. É voltando a câmera a objetos insignificantes -ao menos na aparência- que ela espera pacientemente que eles se mostrem plenamente. E plenamente, no caso, não quer dizer que esses personagens ou suas vidas explodam numa riqueza inesperada. Não, as situações é que os enquadram, tanto quanto a paisagem.
Assim, em “First Cow” tudo começa com Cookie, cozinheiro que acompanha um grupo de candidatos numa corrida do ouro. Os conflitos são simples. Não há comida e Cookie é pago não só para cozinhar como para conseguir comida. Não é tarefa fácil. Buscando alimentos ele encontra King-Lu, chinês que veio fazer a América, mas se encontra agora foragido. Juntos, eles chegam ao forte onde se concentram garimpeiros e negociantes.
Tudo isso é importante, porque é o começo da história, mas nada disso é muito importante. Relevante mesmo é que estamos no estado americano de Oregon, segunda metade do século 19, pleno Velho Oeste, mas nada parece com o Oeste que conhecemos.
A vegetação é mesquinha, pouco graciosa, as pessoas não vivem em casas, mas em cabanas que poderiam ter inveja de nossas favelas. Ah, sim, existe o rio. Esse lembra as águas puras dos velhos faroestes.
Em suma, isso é um faroeste, mas não é. É um faroeste pelo avesso. Será preciso acompanhar Reichardt, pois ela busca captar com precisão o impreciso. E sem nenhuma pressa -bem menos do que seu anterior “Certas Mulheres”, de 2016, por exemplo.
A chegada da primeira vaca à região não é um acontecimento. Ela chega a distância, na balsa, pelas águas tranquilas do rio. Mas essa vaca mudará o rumo da história.
Por partes -King-Lu sabe que para alcançar a riqueza há duas formas, um milagre ou o crime. O crime parece uma boa solução. Se roubarem leite da vaca do principal negociante, poderiam fazer biscoitos doces. Cookie sabe fazer.
Então mãos à obra. Nada é excepcional. Nem mesmo o sucesso de vendas da dupla chega a constituir uma surpresa ou um evento (para o espectador). Com isso eles amealham uma pequena fortuna. Que fazer com ela? Ir para San Francisco e abrir um hotel?
Pode ser. Mas em breve. O pequeno empreendedor não é menos ambicioso, no fundo, do que o garimpeiro. E aí está o ponto principal da trama -o comerciante, o ferreiro, o vendedor de biscoitos.
Todos esses, enfim, que vão fazer o velho oeste -mesmo num lugar de raras vacas, portanto sem caubóis-, tanto quanto os garimpeiros, na visão de Reichardt, são menos aventureiros do que ambiciosos. Isto é, podem passar da busca desesperada pela sobrevivência à busca da riqueza. O crime é o menor dos problemas. Faz parte do negócio.
É assim, com enorme persistência, que a diretora busca encontrar, no vago, o preciso. É um filme para espectadores também persistentes, que possam conviver com roupas estropiadas, cabanas sórdidas e nem ao menos sombra de heroísmo. É um Velho Oeste pelo avesso.
Demoramos um pouco a nos acostumar com ele, assim como não é fácil, a princípio, se acostumar aos filmes dessa diretora. Os Estados Unidos que nos mostra, no presente ou no passado, é tão inesperado e selvagem quanto banal. Mas a banalidade é algo que cabe ao cinema mostrar, embora o faça menos do que seria desejável -nos Estados Unidos da Marvel em particular.
Fonte: FolhaPress