Cultura
Quinta-feira, 25 de abril de 2024

‘Alice e Peter’ é estranha fantasia com sonhos ora áridos, ora bocós

INÁCIO ARAUJO –

“Alice e Peter: Onde Nascem os Sonhos” começa por ser uma estranha fantasia com cores de filme publicitário que, talvez, Brenda Chapman associe à ideia de infância.
Mesmo assim, desde que entramos na casa onde vivem os pequenos David, Peter e Alice, o que mais evidentemente chama a atenção de Chapman, a diretora, e de Marissa Kate Goodwill, a roteirista, são duas coisas. Primeiro, afirmar que a infância é o território da imaginação. Em seguida, perguntar: mas o que são a infância e a imaginação?
Não é questão fácil de resolver. Nem a vida das crianças. O mais velho, David, morre acidentalmente quando se preparava para estudar em um internato, custeado pela tia megera. Os dois menores, Peter e Alice, vivem modestamente com os amorosos pais, um casal composto pela branca Rose, interpretada por Angelina Jolie, e o negro Jack, papel de David Oyelowo. O problema é que Jack, um artesão, é também um sonhador, o que coloca a família não raro em dificuldade.
As crianças brincam e sonham, é verdade. Mas, por alguma razão, o que mais marca não é a magia, o eventual encantamento ou mesmo as agruras da imaginação. São as ruas da cidade, que não é nomeada, mas remete não a “Alice no País das Maravilhas” ou às aventuras de Peter Pan, e sim a Oliver Twist, aos romances de Charles Dickens.
Isto é, remete o espectador ao momento em que o capitalismo liberal expulsara do campo a mão de obra necessária ao funcionamento das indústrias.
Uma mão de obra barata e desprotegida. Isso não é referido no filme, mas forma um pano de fundo pelo menos curioso. Temos então uma metade povoada por piratas, heróis e fadas. E outra metade por garotos miseráveis que roubam alguma coisa de quem é, digamos, roubável.
No filme, a divisão não é em duas metades iguais: a parte da cidade é rápida, mas constitui um contraponto tão evidente que percebemos como uma não pode existir sem a outra. Da mesma forma, Rose não pode existir sem sua irmã megera (e rica), Eleanor. Quanto a Jack, não pode existir sem seu irmão, que na vida real é um misto de agiota e dono de loja de penhores e na imaginação de Peter é ninguém menos que o Capitão Gancho.
Sim, porque Alice visitará, ainda que fugazmente, o país das maravilhas e Peter será Peter Pan, o menino que se recusa a crescer para permanecer sempre ligado à imaginação (como roteiristas de cinema ou ficcionistas de um modo geral?).
De certa forma, “Alice e Peter” nos remete a uma nova versão da Londres sinistra entre o fim do século 19 e o início do 20, lugar de pobres muito pobres e desprotegidos e de ricos muito ricos com seus chás da tarde e tudo.
Ou seja, é ao terror de “Alice no País das Maravilhas”, com sua rainha arbitrária e implacável, que somos conduzidos em boa parte do filme. É ao mundo de aventuras de Peter Pan que somos levados na outra parte. Peter Pan é aquele que deve sobreviver às crueldades do mundo sem perder as virtudes da infância (a imaginação, a inocência).
Ao mesmo tempo, somos levados a conhecer um mundo cruel, onde logo no início (e em pleno voo da imaginação) o jovem David morre.
O artesão Jack também provará dessa crueldade, inclusive na cena mais incisiva do filme: ele vai entregar a um ricaço a cuidadosa miniatura de um galeão que acaba de fazer. Mas, azar, acabou com atraso. O ricaço rejeita a encomenda, com um elogio e um tchau mesmo. Não paga um centavo.
Em “Alice e Peter” estamos no mundo das ruas londrinas, cheias de pessoas sem teto, proteção ou trabalho. Impossível não pensar no mundo neoliberal de hoje: o dos refugiados sem refúgio, dos trabalhadores sem trabalho, dos ricos muito ricos.
O sonho existe em “Alice e Peter”, mas é um sonho árido quando não é bocó. É difícil dizer se essa estranha fantasia será mais bem aceita por crianças ou por adultos.

Fonte: FolhaPress