Cultura
Sábado, 20 de abril de 2024

‘Meu Mundo Versus Marta’ soa como ‘Akira’ no país de Bolsonaro

RAMON VITRAL – Parcerias entre escritores e quadrinistas, como fizeram Paulo Scott e Rafael Sica em “Meu Mundo Versus Marta”, não são uma novidade no mundo dos quadrinhos.
O próprio selo de HQs da Companhia das Letras, pelo qual o título é publicado, tem uma bela leva de projetos nascidos assim –Daniel Galera e Rafael Coutinho publicaram “Cachalote”, Vanessa Barbara e Fido Nesti lançaram “A Máquina de Goldberg”, Angélica Freitas e Odyr produziram “Guadalupe” e Emilio Fraia e D.W. Ribatski criaram “Campo em Branco”.
O que é exceção no trabalho da dupla de “Meu Mundo Versus Marta” é a clareza de ambos em relação à primazia das imagens ante as palavras em uma HQ.
Autor de livros de contos, poesia e romances, como o recente “Marrom e Amarelo”, Scott concebeu um enredo que permite a Sica, em seu primeiro álbum longo, explorar o traço e as habilidades narrativas que fizeram dele um dos autores mais distintos dos quadrinhos nacionais. É um espetáculo sequencial em preto e branco sem qualquer intenção de explicitar sua trama ao leitor.
Trama, aliás, que talvez seja o aspecto menos relevante do quadrinho. É um fiapo de história, algo sobre um dia na vida de um funcionário de uma corporação com propósitos escusos que cuida de uma criança em crescimento acelerado em meio a uma cidade frequentada por seguidores de seitas suspeitas. Ou quase isso.
Mas a trama não vem ao caso. É tão irrelevante quanto as palavras podem ser em uma HQ. E a ausência de balões de fala ou pensamento reitera a proposta dos dois autores em oferecer uma experiência narrativa estritamente visual.
Se o design inventivo e o domínio narrativo de Sica já eram notáveis mesmo em suas tiras mais sucintas, o formatão e as 160 páginas dessa parceria com Scott evidenciam ainda mais a desenvoltura do ilustrador com a linguagem das HQs. Vai de páginas compostas por um único painel a outras que passam dos 30 quadros, investindo em várias diagramações e propostas de distribuição desses blocos de imagens.
E, apesar de todo o virtuosismo estético do quadrinista, não consta um único quadro sem razão de ser. Tudo está lá em prol de uma história de tensão crescente.
Predomina um clima conspiratório constante, do despertar do protagonista ao lado de um bebê no início do dia, passando pela ida dele ao trabalho e, depois, um passeio conturbado dos dois pela cidade, até o final apoteótico tal qual um “Akira” brasileiro.
A obra-prima do japonês Katsuhiro Otomo se tornou um clássico das HQs mundiais ao apresentar um épico de ficção científica sobre revolta e descontentamento juvenil com a rigidez social e os rumos do Japão moderno. “Meu Mundo Versus Marta” soa como um surto semelhante, com o mesmo carisma pop, mas ecoando as desilusões e tensões impostas pelo governo Bolsonaro.
A dupla criativa responsável pela HQ concebeu uma obra aberta o suficiente para que ela acabe sendo sobre aquilo que seu leitor achar mais apropriado, mas é fácil ver paralelos entre a distopia imaginada por eles com a atual realidade sócio-econômica-pandêmica vivenciada pela população brasileira.
Pode ser isso ou o que o leitor queira. A certeza está na arte de Sica, hipnótica e assombrosa como poucos quadrinistas conseguem fazer.

Fonte: FolhaPress